Nação de loucos
Estive nos últimos dias envolvido em leituras sobre a presença da loucura na literatura, escrevendo um ensaio que será publicado em um volume sobre o assunto, como parte do evento A loucura do direito: encontros e desencontros entre os saberes da mente e da lei. Dos símbolos de Jung, passei às bruxas, à história da depressão e à sociedade do cansaço de Byung-Chul Han. Revisitei as obras de Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Bernardo Carvalho, Daniel Galera, Haruki Murakami e Han Kang. Nunca havia lido nenhum deles detendo minha atenção especificamente nos trechos que ilustram a possibilidade de desordem mental. Percebi que, assim como o amor e a traição, a loucura é matéria corrente e universal.
Não pretendo escrever aqui sobre o tratamento literário que o assunto provoca na obra dos autores em questão. Essa reflexão deve aparecer no já citado ensaio. O que proponho neste brevíssimo artigo é uma reflexão sobre a loucura e o desequilíbrio em nosso tempo, levando em conta a constituição de um tecido social que é, neste Brasil de 2021, de Bolsonaro e epidemia, fundamentalmente enfermo. Estamos todos mais ou menos doentes, mais ou menos loucos, vivendo tempos onde convivem referências tão anacrônicas que tingem com aspecto de delírio qualquer tentativa de análise e apreensão dessa realidade.
Afinal, quem diria que, em 2021, seria preciso conviver com correntes que questionam o formato esférico da Terra, contrariando argumentos lógicos e científicos que começaram a ser levantados há mais de dois mil anos, quando Aristóteles analisou a sombra do planeta sobre a Lua durante um eclipse? Ou que entraríamos em discussões violentas sobre a eficácia das vacinas? Quem diria que nosso principal líder político questionaria o segmento ideológico sustentador do nazismo? Ou que uma parcela considerável da população passaria a questionar a segurança de um processo eleitoral que jamais apresentou indícios de fraude?
Quem diria que empregaríamos dinheiro público, nosso dinheiro, na composição de um corpo parlamentar de investigação que, em 2021, precisaria reafirmar a voz absoluta da ciência e da pesquisa em oposição ao charlatanismo interesseiro de alguns grupos? Quem diria que esses pequenos grupos teriam poder suficiente para tumultuar uma nação? Quem diria que em 2021 voltaríamos a discutir autoritarismo, intolerância, fome, tortura e ódio? A feição mais embaraçosa desse anacronismo mórbido que alimenta nosso mal-estar é sua capacidade de retirar dos livros de história termos e ideias que pareciam elucidados, assentados no passado, e lançá-los outra vez no presente.
Diante da loucura cega dos conspiracionistas, dos delírios autoritários de novos déspotas e da demência incondicional de seus seguidores, quase não tem efeito a voz da razão e da ciência. Custamos a perceber isso. Por muito tempo, apresentamos argumentos, restauramos conceitos, convidamos ao diálogo. Por muito tempo, resgatamos das páginas da história explicações que, há décadas, séculos e milênios, foram suficientes para calar a voz da ignorância. Mas nada é suficiente diante da obstinação dos loucos.
Quando nos damos conta de que são inúteis os referenciais da ciência, quando percebemos que nossos líderes debocham da história e da razão, o que nos resta, então, é a evolução de nossa própria loucura. Não a loucura violenta dos outros. A nossa é aquela que aparece nas noites mal dormidas, nos ansiolíticos no armário, nos tiques nervosos, nos episódios de ansiedade, nos ataques de pânico, nas crises de choro, na confusão mental, na depressão, na melancolia e no luto. Somos uma nação de enfermos em conflito.
Serviço
A loucura do direito: encontros e desencontros entre os saberes da mente e da lei
Entre os dias 24 e 26 de agosto
Evento online e gratuito
Informações em breve
Clique aqui para se inscrever