Bemdito

O castigo – Parte II

A segunda parte de um conto sobre fatalidade
POR Rhaina Ellery

Papai tinha o rosto virado para o lado oposto. Sua perna direita fazia um movimento desesperado, como se o pedal do freio estivesse enguiçado. Desde pequena eu tinha por hábito acompanhar seus tiques. Puxava a manga da camisa antes de girar a maçaneta do quarto, arregaçava as calças para poder se sentar, esfregava as mãos antes de segurar o volante do carro. Seu corpo seguia ordens estranhas como o de um ventrículo embriagado. 

Melhor não se atrasar, ele aconselhou suavizando a voz de barítono. Abri a porta do carro, me encurvei, mas demorei a impulsionar o corpo para fora.

Oito homens, só uma mulher. Eu. 

Não fosse pelo fato de não ter bebida alcoólica, era uma típica cena de boteco: rostos masculinos me comiam como um petisco, duvidosos sobre se eu deveria mesmo estar ali. 

Sempre quis impressionar os machões da faculdade, ficava orgulhosa quando escutava que eu bebia feito homem, era meu certificado de respeito. Achava que assim eles não me importunariam, eu seria um deles. Não demorou alguns porres para eu entender que o buraco era mais embaixo, aliás, era um buraco que os movia. 

Procurei uma cadeira próxima à janela. A reunião começou sem nenhuma cerimônia. Tive que ouvir sobre perda de emprego, de dentes, de dinheiro. Todos abstêmios de virilidade. Cada um que se erguia contava a mesma história: super-homens que buscavam força na kryptonita. 

Lembrei de Virgínia, amiga de mamãe. A proximidade da amizade, atualmente, se dava pelas histórias que minha mãe sempre contava: Virgínia é fluente em quatro línguas; Virgínia tem doutorado em ciências políticas; Virgínia é linda; Virgínia se separou ainda grávida; Virgínia deixava a criança chorando e ia pra farra; Virgínia perdeu a guarda do filho; Virgínia dava em cima do cunhado e da cunhada; Virgínia vive só.

Virgínia perdeu mais que emprego, dentes e dinheiro. A bebida tragou sua alma para o fundo do copo. Ela procurava sólidas esperanças em meio aos cubos de gelo, mas estava tudo diluído pelo whisky. A punição de Virgínia era a solitária, mas, naquele dia, ao menos em pensamento, eu estive com ela.

Um senhor vestido com uma camisa social amassada, que parecia ter saído de dentro de uma garrafa miniatura, foi ao centro da roda e proclamou o primeiro passo do AA: admitimos que somos impotentes perante o álcool, que perdemos o domínio sobre nossas vidas. Vocês se dispõem a admitir a derrota completa? 

Silenciosamente, não admiti. Será que Virgínia admitiria? O fato é que comecei a beber aos dezoito anos, assim como quase todos os meus amigos. A cerveja quente, o vinho barato, tudo era motivo para rir, dançar, esquecer, beijar. Aos finais de semana, a cartilha da diversão era extensa e o goró fazia parte dela. No restante dos dias, eu continuava estudando para não perder a bolsa, sendo explorada em dois estágios e ignorando as constantes brigas entre meus pais.   

Até que perguntaram meu nome. Inventei um qualquer e emendei: mas não sou alcoólatra. Todos riram, enquanto balançavam os corpos marinados, enrugados por tantos anos embebidos em álcool. A vergonha queimou meu estômago e voltei a me encolher na cadeira. Estava humilhada como nos sonhos em que estou nua no trabalho.

Procurei algum medidor de tempo, eu tinha esquecido meu relógio em casa e precisava de algo que me fizesse parar de tentar ser paciente, pelo menos até que meu pai voltasse para me buscar. Uma partida de futebol escutada bem baixinho pelo vigia me guiou alguns minutos, poucos. Foi então que olhei pela janela e vi o Monza branco do meu pai estacionado na rua lateral. Ele desobedeceu a ordem de mamãe sobre me deixar lá e voltar para casa. Ficou me esperando. Afinal, ele sabia bem para quem era aquele castigo.

Rhaina Ellery

Advogada pública, especialista em escrita e criação e mãe de duas meninas.