O meu menino
Dia desses, fui me despedir do meu filho e da minha filha no portão de casa. Meu filho entrou no carro pela porta do motorista e minha filha no banco de passageiro da frente, e partiram pra casa da mãe deles. A guarda compartilhada possibilita esse trânsito na cidade e nos afetos.
Mas quedei ali sem acreditar que aquilo era possível, meu filho dirigindo um automóvel e a minha filha não usa mais cadeirinha. E me dei conta de que congelei na minha memória uma idade para cada um deles. O menino sempre tem entre os nove e os 17 anos, e a menina tem sempre 4 ou 6 anos. Sei que essa idade não corresponde, mas é assim que na minha cabeça funciona.
Talvez isso explique por que o meu falecido pai, quando das idas ao Itapeim (brenhas de Beberibe), ao me apresentar para os seus contemporâneos, referia-se a mim nesses termos:
– Esse aqui é meu menino mais novo!
Com a barba grisalha do tamanho da barba de Matusalém, eu ainda era chamado de “Neno”, que é uma corruptela de neném. Meu irmão me chamava assim quando eu cheguei ao mundo. Acho que, na cabeça do meu pai, eu não cresci, não ganhei o mundo, não formei família – para ele, eu continuei sendo um menino. Lembro-me do último sorriso dele ao me ver chegando na emergência do hospital e falando consolado:
– É o Neno que chegou.
Ele faleceria algumas horas depois desse sorriso.
A morte brutal de Tico
Talvez explique também a razão para a mãe do Tico se referir ao filho sempre com muito carinho. Quase infantil. Como se ninasse o filho novamente. Tico era um trabalhador, pedreiro de profissão, que foi abordado por uma viatura da Polícia Militar do Ceará, ali na Maraponga. Após a abordagem, foi levado na viatura para um matagal, espancado brutalmente e assassinado.
Havia sangue do Tico nas botas e na farda dos policiais. Havia sangue do Tico na viatura. Os órgãos internos do Tico foram lacerados por chutes e golpes de cacetete. O caso foi a júri popular e os PMs foram absolvidos. A defesa recorreu e o caso segue impune. Os assassinos do Tico estão soltos e acho até que um deles voltou à ativa.
Eu estava presente no dia do julgamento. Amparei como pude aquelas mulheres que exigem justiça e condenação dos assassinos de seu irmão e filho. Nenhum crime foi imputado ao Tico. NENHUM. Eu nunca serei capaz de sentir o que uma mãe sente. Perder um filho de forma violenta, cruel e operada por agentes do Estado é uma dor inimaginável. Lacerante. Morre-se e vive junto do filho.
O fio que une eu, meu pai e a mãezinha do Tico é o de olhar para os filhos sempre com o olhar parado em algum lugar do tempo da infância. Onde, ainda crianças, brincam seus sonhos e brincadeiras. Nenhum pai e nenhuma mãe tem seu “Neno” e o imagina assassinado pela instituição que tem como ideal a preservação da ordem, tranquilidade das famílias e segurança dos cidadãos. A imagem da mãe do Tico segurando a foto do filho como se o segurasse novamente no colo faz parte do meu repertório de justiça. Para aquela mãe, seu filho também não cresceu e ela ainda pode segurá-lo, pelo menos na memória.