Bemdito

O que é uma “missão cumprida”? #2

Antes de entender o que é uma "missão cumprida", é preciso compreender do que se trata uma "missão dada"
POR Ricardo Evandro
Foto: Theo Eisenhart

Antes de entender o que é uma “missão cumprida”, é preciso compreender do que se trata uma “missão dada”

Ricardo Evandro S. Martins
ricardo-evandro@hotmail.com

Na primeira parte desta série de ensaios, pude falar sobre como Hannah Arendt desenvolveu um raciocínio não tão conhecido quanto a famosa ideia de que o ex-oficial nazista, Adolf Eichmann, teria apenas obedecido a ordens – cumprido uma missão. Pude mostrar que, mais importante do que falar sobre ideia, seria interessante tratar sobre como Eichmann invocou o nome de Kant e ainda sobre a sua respectiva noção de dever, no inquérito policial acerca dos crimes de guerra que cometeu ao enviar milhares de judeus ao campo de concentração e extermínio.

Com isso, também pude resgatar um texto de Kant, O que é o Iluminismo? (1783), para falar sobre como Eichmann, no máximo, fez uso daquilo que o filósofo alemão chamava de “uso privado da razão” – isto é, o uso da razão não-livre, quando se ocupa um lugar de obediência, sem poder ser livre para se ousar saber por si mesmo. O espanto de Arendt ao ver Eichmann invocar Kant se deu pela notória contradição entre ser um obediente oficial nazista e, ao mesmo tempo, falar que sempre se seguiu a ética kantiana, aquela que, contrariando a hierarquia militar, diz que devemos agir de modo que a nossa ação seja universalizável, considerando a dignidade incontornável dos seres humanos, de modo que os nossos atos estejam sob a crítica – o “tribunal da razão”.

Mas logo isso foi explicado quando Arendt relata sobre como Eichmann justifica uma alteração no seu comportamento por meio da mudança de seu princípio ético, quando deixou de viver segundo os princípios kantianos, para assumir para si um outro imperativo categórico, o do Terceiro Reich: “Aja de tal modo que o Führer, se souber de sua atividade, aprove-a”. Pois bem, nessa mesma passagem, Arendt pôde, por uma breve frase, deixar sua crítica à ética de Kant, ao afirmar que, ainda que tenha seguido o imperativo ético nazista, “não existe a menor dúvida de que Eichmann efetivamente seguia os preceitos de Kant: uma lei era uma lei, não havia exceções”.

Nesta oportunidade, então, aproveitei para explorar melhor essa afirmação da filósofa alemã, para, então, tentar responder à pergunta-título desta série de ensaios, O que é uma ‘missão cumprida’?, mas por meio da tentativa de responder à questão implícita “o que é uma ‘missão dada’?”, ambas resumidas pela pergunta feita por Giorgio Agamben: “O que é um comando?”.

Finalmente, passo a tentar desenvolver minha tentativa de resposta. Para começar a fazer isso, tenho de iniciar esta segunda parte de ensaio revelando o porquê de colocar a questão-título por meio do uso da expressão “missão cumprida”. Trata-se de uma expressão comum no meio militar brasileiro, e isso é fácil de se aceitar. Mas pode ser interessante levantar a hipótese na linguagem ordinária coloquial contemporânea brasileira. A expressão completa, “missão dada, missão cumprida”, talvez tenha ficado famosa por causa da popularidade do filme brasileiro Tropa de Elite (2007), cujo subtítulo da película é homônimo àquela expressão. 

O que se pode explicitar dessa frase é ela conserva consigo o pressuposto de que um comando dado não tem exceção para o seu descumprimento. Em outras palavras, a frase tem um efeito retórico, aliás, um poder retórico-pedagógico, que quer dizer ao ordenado sobre como não haveria liberdade para se questionar, tampouco se desobedecer a “missão dada”. Uma vez “dada”, a missão é “cumprida” – aquilo que é “dado”, portanto, iguala-se àquilo que é “cumprido”.  

É interessante notar a estrutura lógico-gramatical dessa frase. Isso porque, apesar de trazer uma ordem, um dever, um comando, ela é estruturada pelo modo indicativo do verbo ser, na qual a “missão dada” é “missão cumprida”. Há, aqui, a supressão do verbo modal de cunho normativo, que tem efeito prático imperativo. Pois, em verdade, o “dever” para aquele ou aquela que “deve” cumprir uma missão não implica que necessariamente a missão será cumprida. Um comando estabelecido ordena, mas daí dizer que a tal ordem é seguida revela o sarcasmo da frase dentro do seu problema lógico, de que não se pode seguir um dever de um ser (falácia naturalista): não há chances de descumprimento para uma missão dada a um militar, pois, quando dada a missão, “é”, no sentido de que “deve”, ser cumprida.

Ao falar dessa tensão bipolar entre ser e dever-ser, na expressão “missão dada é missão cumprida”, o meu objetivo aqui é aprofundar esse tema por meio da “arqueologia do comando”, feita por Agamben, em Criação e anarquia (2017). Pois ele conseguiu trazer importantes resultados na sua investigação sobre a natureza de um “comando”, como sendo, segundo diz, um objeto que tem “a quase completa ausência na tradição filosófica”. 

Há muitos textos sobre o que ronda o mistério da obediência. Desde o clássico de La Boétie, com o seu Discurso sobrea servidão voluntária (1576), passando, de um certo modo, ainda que bem secundariamente, pelo próprio livro de Arendt, Eichmann em Jerusalém (1963), até ao impressionante A vida psíquica do poder (1997), de Judith Butler, inspirada em Michel Foucault, e na psicanálise, além de muitos outros textos sobre o tema. Mas, como diz Agamben, já não há tantos textos sobre a natureza da ordem, do dever, do comando.

Pessoalmente, entendo que isso se deve, talvez, ao fato de que essa investigação sobre o comando, o dever, esteja mais presente na filosofia e na teoria do Direito. Porém, Agamben levanta a hipótese de que explicaria essa ausência geral de preocupação filosófica sobre o comando porque teria Aristóteles sido aquele que primeiro estabeleceu, como objeto de investigação da filosofia, somente as expressões linguísticas proposicionais, estruturadas de modo assertivo, propositivo, numa relação ontológica entre substantivo e predicado, passíveis de ser julgadas como verdadeiras ou falsas.

Desse modo, conforme explica Agamben, há na tradição uma grande cesura no pensamento sobre a linguagem. De um lado, há o objeto de estudo dos filósofos, “Há um discurso, um lógos, que Aristóteles chama ‘apofântico’ porque é capaz de manifestar (este é o significado do verbo apophanio) se uma coisa existe ou não, e é por esta razão necessariamente verdadeira ou falsa”; e, por outro lado, há “outro discurso, outro logoi – como orações, comandos, ameaças, narrações, questões, e respostas (e também, podemos acrescentar, exclamações, saudações, conselhos, maldições, blasfêmia, etc.) – que não são apofânticas, não manifestam ser e não ser de algo, e, portanto, são indiferentes à verdade ou à falsidade.”. 

Aristóteles, assim, diz Agamben, teria excluído o “discurso não-apofântico da filosofia” da história da lógica ocidental. O que o filósofo italiano está nos dizendo, então, é que a história da tradição filosófica ocidental está dividida entre dois polos: uma investigação oficial sobre o ser, a qual julga a verdade ou a falsidade dos discursos apofânticos, isto é, dos modos de expressão propositivos, os quais descrevem a realidade; e há, também, a investigação da “ontologia do comando”, ou seja, o estudo sobre os modos de expressão linguísticas não-apofânticas, aquelas que não descrevem os objetos, mas que lidam de modo imperativo com o mundo, com as coisas e as pessoas. Enquanto a primeira investigação é feita pela ciência e pela filosofia metafísica, a segunda é o próprio fazer do Direito, da religião e da magia – sobre os quais Agamben, inclusive, chega a dizer algo muito curioso, a respeito de como esses três campos do saber humano “originalmente não são fáceis de ser distinguidos”. 

Dito tudo isso, resta ainda a pergunta: o que é um comando? Como eu disse, se respondermos à essa pergunta, podemos entender o que é “missão cumprida”. A expressão “missão cumprida” tem origens teológicas, nos missionários evangelistas e, também, católicos, nas suas ordenações, assim como os missionários evangélicos, catequizando pessoas ainda neste século, no Brasil.

Lembrando, agora, de outro filme, A missão (1986), é possível ver, no personagem de Robert De Niro, o noviço jesuíta obstinado pela sua forma de se viver convertida, a qual jamais poderia ceder ao comando da Coroa Portuguesa e à própria submissão de sua Ordem, ao permitir a escravidão indígena. É que a sua verdadeira “missão” não obedecia aos comandos de quem detinha mais poder, e poder pela violência. Então, o que ele estava fazendo? 

A questão importante, aqui, não é somente a importância de se desobedecer à uma ordem injusta, pelo uso livre da razão, como queria Kant. O importante é entender também a natureza do comando, enquanto dispositivo, aparato, máquina de mandare. Pois a desobediência, talvez, possa ser viabilizada se se estiver desperto ou desperta para o vazio dos verbos modais do poder, da “vontade de”, do querer, do dever, ou, ainda, da ficção, como pensava, já tardiamente, o jurista Hans Kelsen, ao falar das normas jurídicas como dever-ser (Sollen). 

Apesar disso, não se pode esquecer que o comando tem efeitos reais. Agamben sabe bem disso e nos ensina que, desde John Austin – o filósofo contemporâneo da linguagem, e não o jurista britânico do século XIX –, no seu Como fazer coisas com as palavras? (1962), um comando, uma ordem imperativa, não diz respeito ao real, a algo fático, pois se trata, justamente, de um “ato de fala”. É um dizer-fazer, que ocorre no mundo. Ou seja, quando alguém diz “eu juro”, essa pessoa não se refere a nada a não ser ao próprio ato que é também um fato. Um comando, portanto, é uma performance

Assim, retomando Arendt, quando a filósofa diz que Eichamann seguia Kant, ainda sim, ao não abrir exceções ao seu dever, mesmo que tal dever seja o de seguir o comando de Hitler, há, aqui, algo da crítica de Hegel ao formalismo na ética kantiana, mas, também, a denúncia sobre a possibilidade de uma ética do dever poder estar esvaziada ao ponto de nunca tocar no mundo dos fatos, ou mesmo no mundo dos outros – daqueles e daquelas com quem convivemos -, estando no mundo, comandando sem cessar, sem resistência, como um poder infinito, uma potencialidade sem fim.  

A partir disso, ainda com Agamben, é possível dizer também que “um poder cessa de existir somente quando ele deixa de dar ordens.”. Por isso, não é somente importante desobedecer, não cumprir as ordens. É também importante cessar as ordens do poder. Pois é preciso desativar as duas pontas, os dois lados de uma “missão”. Não apenas se tem de se desobedecer: é preciso também que se cesse de comandar porque, se as ordens ainda estiverem em validade, sempre pode haver alguém para obedecê-las. A desativação tem de ser do dever. Pois, lembra-nos Agamben, “se isso [o comando] é desobedecido ou desconsiderado, de nenhum modo se impugna sua validade”. 

O comando não cessa de comandar, mesmo com a desobediência. Então, o que se deve fazer? Ou, o que se faz para desativar a máquina de ordens? Como isso é possível? 

Enfim, é preciso ter consciência da performance do comando, de que se trata de imperativo vazio, mas que se concretiza como ato de fala, como um fazer real. Sendo assim, diante da potencialidade do poder da “missão dada”, da sua magia criativa que supera a divisão entre ser e dever-ser, sobrepondo também a divisão entre a linguagem e as coisas, tem de se lembrar do poder da nossa vontade, mas, não somente para confrontar a nossa vontade contra uma outra.

Pode-se lembrar dizendo ao comando, à “missão dada”, ansiosa por ser “missão cumprida”, que há poder, potência, ou ainda, como entendia Nietzsche, ao igualar potência com vontade, em dizer “não” ao nosso próprio poder. Isso é o que talvez insinue Agamben, ao lembrar do personagem de Bartleby, de Melville, ao se dirigir ao “the man of law”, que é preferível não, ou, ainda, “I would prefer not to”.

Ricardo Evandro Martins é doutor em Direito e professor da Universidade Federal do Pará. Está no Instagram.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.