Bemdito

O que faz o Estado diferente dos bandidos?

De Santo Agostinho a Giorgio Agamben, um ensaio filosófico sobre justiça e Estado
POR Ricardo Evandro
The capture of the Pirate Blackbeard (J. L. G. Ferris)

De Santo Agostinho a Giorgio Agamben, um ensaio filosófico sobre justiça e Estado

Ricardo Evandro S. Martins
ricardo-evandro@hotmail.com

Em uma célebre passagem do seu Cidade de Deus (426 d.C), Santo Agostinho reflete sobre as semelhanças possíveis entre um estado institucionalmente constituído por um pacto social e um grupo de piratas, ou, simplesmente, dependendo da tradução, por um “bando de salteadores” – termo usado por Hans Kelsen, ao menos na tradução da edição brasileira de sua Teoria pura do direito (1934).

De modo mais simples, Agostinho, o Doutor da Igreja, estava perguntando também: o que diferenciaria um reino de um grupo de piratas? Sobre isto, ele até recorda de uma antiga anedota, assim, “em tom de brincadeira, porém a sério”, na qual se conta sobre um pirata preso, a quem teria sido questionado pelo próprio Alexandre, o Grande, sobre o que lhe parecia ser para ele “o sobressalto em que mantinha o mar”. 

De modo mais simples, Alexandre estaria questionando o pirata o seguinte: o que seria isto, ser pirata, viver de modo bandido pelos mares? Agostinho diz, então, que foi assim que respondeu o pirata – “com arrogante liberdade” – à questão de Alexandre, o pretenso rei de todo o mundo, do Ocidente ao Oriente: “O mesmo que te parece o manteres perturbada a Terra toda, com a diferença apenas de que a mim, por fazê-lo com navio de pequeno porte, me chamam ladrão e a ti, que o fazes com enorme esquadra, imperador”.

À pergunta sobre o que faz a diferença entre um reino e um grupo de piratas, ou, ainda, atualizando a questão, entre um Estado e uma facção criminosa, como um grupo de narcotraficantes, por exemplo, ou entre a polícia e um grupo miliciano, ou entre um partido e a máfia, Agostinho responde de modo simples: é a Justiça. Por isto, a sua provocação filosófica fundamental, que também é política e jurídica, é a seguinte: “Desterrada a justiça, que é todo reino, senão grande pirataria?”.

Sim, é a Justiça que distingue estes exemplos, é a Justiça que faz a diferença entre a legalidade e a ilegalidade, entre um oficial e um criminoso. Porém, como se pode perceber, essa questão provocadora e fundamental necessita de resposta à uma outra questão. Só se pode saber mesmo sobre aquilo que distingue o estado de um grupo de piratas se também se souber responder uma outra pergunta por um conceito também fundamental, que, seguindo Agostinho, seria a medida, a fronteira, ou, ainda, o limiar, entre o estado e o bando: afinal, o que é Justiça?

Agostinho seguia o conceito clássico, já encontrado em Platão e em Aristóteles, da Justiça como virtude, mas também como um conceito distributivo, que também seria reproduzido pelos romanos, como Cícero e Ulpiano, e, muito depois, já com a Escolástica, também desenvolvido por São Tomás de Aquino: justiça é dar a cada qual aquilo lhe é seu, o que lhe pertence. No original, em outro escrito seu, no Trindade (416 d.C.), assim diz Agostinho: “(…) é justa a alma que segundo os ditames da ciência e da razão dá a cada um o que a cada um pertence, na vida e nos costumes (…)”.

Se se entende minimamente do que se trata este conceito, ainda sim, é fácil de se perceber que se trata de um conceito vago, genérico, mesmo que tantas vezes repetido em sentenças judiciais, na literatura e na mídia. Assim, para seguir ao encerramento deste ensaio, e considerando o tempo em que nos encontramos, tempo das chacinas cometidas pela polícia, tempo das milícias, do narcotráfico – que no Brasil tem até curiosamente se tornado neopentecostal – dos partidos mafiosos – também por vezes neopentecostais –, seria interessante avançar para uma outra concepção de justiça, uma que considerasse a historicidade dos vencedores na qual vivemos, muito honrosa com o seu passado de conquistas, e muito reverencial aos que sustentam o discurso e as práticas oficiais, das instituições legais e legalizadas, com o objetivo de legitimar a legalidade.   

Talvez, a Justiça outra que se poderia invocar seja ao menos aquela pela qual se poderia fazer a distinção entre um grupo político, enquanto comunidade de formas-de-vida autênticas, que destituem o poder que lhes oprimem por todos os lados, poderes oficiais, burocráticos ou não, daquela despolitização que confunde o público com o privado, e que gera uma guerra civil (Stasis) – que tem tornado cada vez mais mundial. Assim, a Justiça pode ser outra coisa, que não a vingança, nem a justiça dos carrascos – tampouco a justiça dos tribunais e dos dispositivos de segurança pública – pois, como diz Giorgio Agamben “a justiça não é vingança, não tem nada a reivindicar”. Então, resta ainda sim saber: o que é justiça? Ou, o que pode ser a Justiça? 

Para encerrar este ensaio, quero responder tal pergunta, partindo do Ideia de prosa (1987), escrito pelo filósofo italiano Giorgio Agamben – sobre quem tenho escrito nos últimos ensaios neste jornal. Ao falar de sua “ideia de justiça”, Agamben nos diz que “A justiça é assim, a tradição do Esquecido”. O que isto significa? Num esforço hermenêutico para se entender esta – que é um tanto obscura – ideia, ouso, aqui, propor que talvez a ideia de justiça de Agamben se trataria de uma que seja mais do que a vaga ideia de dar aquilo sobre o qual não se sabe bem o que é, de quem geralmente não é tributado, e para aquele ou aquela sobre quem também desconhecemos, e por meio de uma medida tão incerta quanto, isto é, uma outra ideia e justiça, que não seja a clássica “dar aquilo a quem é devido”. 

Por isso, é preciso ir além da clássica ideia. E, talvez, a ideia que propõe Agamben seja uma que, mesmo que continue sendo vaga, pudesse lidar melhor com a moderna distinção entre o Estado e os bandidos ou, então, que pudesse lidar de um modo outro, para fora do dualismo entre identidade e diferença; um modo que fale sobre uma comunidade política ainda por vir, uma comunidade política adequada para se lidar com a crise política do presente, sendo, então, uma que vem.

Como o filósofo italiano diz, a Justiça não é um discurso ou um testamento. Segundo ele, Justiça é um gesto que anuncia, uma voz, uma vocação – um chamado. E, mais, ele entende a Justiça como união entre a linguagem (Lógos) e o justo (Diké), o qual pode ter o poder, não de lembrar o Esquecido, nem de dar conhecimento dele, mas, sim, o de dar limite à linguagem humana, sabendo que nem a tudo se pode julgar, processar e punir – dar nome –, e, também, de se lembrar.

Mas, enquanto animais falantes, ao falar, e ao recordar, já se está sob juízo, sob veredictos, penas e vinganças, talvez esperando pelo fim dos limites fictícios entre direito e vida, povo e estado, criminoso e inocente, direito e vingança, quando a pergunta mesma sobre o que distingue o Estado daqueles que foram banidos da ordem legal já não fará mais sentido, quando não tivermos mais como separar regra da exceção, legal do ilegal, autoridade oficial do bandido. 

Mas, não é este tempo mesmo em que vivemos, hoje? Este, em que os “limites fictícios” que deveriam separar o estado do bando já estão em irreversível indistinção? Creio que sim, pois é este mesmo o tempo em que uma Lei e um Ato Institucional ilegal são uma já coisa só: leis sem eficácia, ou legitimidade, e atos institucionais sem legalidade, mas muito eficazes, e geralmente letais.

Então, o que resta? Talvez estejamos esperando, não apenas pelo Juízo Final, mas também pelo dia seguinte, “(…) tal como o condenado liberto na colônia penal kafkiana, que sobreviveu à destruição da máquina que devia executá-los (…)”, quando se deixou para trás, como diz Agamben, em A comunidade que vem (1990), “(…) o mundo da culpa e da justiça (…)”, sendo este tempo o da “vida que começa na Terra depois do último dia”, que “é simplesmente a vida humana”.

Ricardo Evandro Martins é doutor em Direito e professor da Universidade Federal do Pará. Está no Instagram.

Ricardo Evandro

Professor de Filosofia do Direito na UFPA, é doutor em Direitos Humanos e coordena o Grupo de Estudos sobre as Normalizações Violentas das Vidas na Amazônia. Atualmente pesquisa sobre teologia política, história do direito e anarquismo.