O retiro recôndito da maternidade
Ser mãe é reconhecer que há momentos simultâneos de desespero e amor, tudo com a intensidade de quem se reconstrói todo dia
Paula Brandão
paulafbam@gmail.com
A propósito do dia das mães, ontem fiquei a refletir sobre o tema. Camille Castelo Branco escreveu recentemente, no Bemdito, que poucas coisas são tão quebradiças, tão feitas de buracos, quanto um pai. E eu acrescento: mãe é um buraco cheio de representações e sentimentos, onde é preciso fazer o movimento inverso e ir esvaziando para chegar ao fundo.
Quando fiquei grávida, tinha um caderninho em que anotava as coisas que me diziam quando viam meu barrigão. Havia uma pessoa bem próxima que afirmava, sem o menor constrangimento: “quando olho pra você, lembro como sua vida acabou! Pode dizer adeus às farrinhas.”
Quando meu filho nasceu, tudo virou outra coisa, e era eu ainda, entende?
Na semana anterior à sua chegada ao mundo, começou a me dar uma ansiedade tranquila e as minhas ideias serenaram. Eu me senti restaurada, após 9 meses de espera. Contava com a monotonia que se aproximava, com os pés assentes em cada manhã. Logo eu estaria dividida nas minhas atividades mais banais e, sempre que olhava para o quarto dele, pensava que seria meu retiro recôndito. Para causar tumulto, coloquei uma rede no meio da minha sala, totalmente inconveniente, mas eu queria ficar ali, como se não suportasse ser esquecida no quarto, nas minhas exclusivas tarefas maternas.
Na primeira semana, foi uma festa, pois peguei rapidamente as manhas e aprendi a linguagem das palavras alegres que o encantavam! Sabia de um truque infalível para choro de menino: cheiro de mãe. Inconfundível! Em qualquer lugar do mundo, se eu sentir o cheiro da minha, estarei dentro do seu abraço. Mas em um dia não tão belo assim, bateu o desespero! Meu pequeno chorava muito, e nem o tal aroma materno resolvia, nada que eu tivesse tentado até então dava certo. Entreguei-o ao pai, lembro-me de entrar no quarto e deitar. Na ânsia da irrupção da palavra indefinida, chorei. Mandei a seguinte mensagem para uma amiga, sentindo-me enganada por todas: “Você nunca me disse que maternidade era assim!” De imediato, ela respondeu, pela sua experiência como mãe de três filhos: “Não disse porque a dor logo esquecemos. Por isso, temos outros.”
Lu, você vai saber agora, ali eu decidi que sentiria tudo de uma vez, adentraria no mar revolto das intensidades, e teria somente um filho. Eu estava emocionada demais para fazer tal escolha, mas depois que se toma uma decisão dessa natureza, raramente se volta.
E passou mesmo! A dor partiu e ficou o jeito dele me olhar, o jeito como me dava o braço satisfeito dividindo as mínimas novidades que aprendia, e eu contava pra todo mundo como se ele fosse um pequeno Einstein. Virei a tal mãe que tenta sempre se antecipar às quedas, que carrega malas com o que ele poderia precisar se um tsunami nos atingisse; não me orgulho, mas já me troquei com uma criança de cinco anos que “arengou” com ele. Isso tudo eu não imaginava! Precisei ser acudida pela analista, que precisou lembrar que as minhas dores, quando criança, eram minhas, e que deixasse que meu filho tivesse as dele. Sim, as vivências são outras. E como é difícil separá-las!
Um dia desses, eu estava numa pousada na praia. Deixei o filho com o pai e fiquei no quarto lendo. Com o passar do tempo, achei estranho não ouvir a palavra “mãe”, dita sempre na cadência que o momento exige, em torno de 750 vezes por dia, e resolvi olhar o que acontecia. Quando vi o pai, conversando, e dizendo que ele tinha descido até a praia com uma família, para jogar bola, eu não respondi. Calada, voltei ao quarto com uma expressão de angústia e a certeza que falar naquele momento não aliviaria nada que eu sentia. Logo começaram a chegar mensagens do pai aflito, já com ele, mostrando o jogo de bola com os amiguinhos na praia. A mãe da criança, ao me encontrar disse: “Eu sabia que você não ia gostar. Mas os homens são assim mesmo, diferentes das mães.”
Aprendi desde cedo que angústia é mal de quem vive intensamente. Ser mãe é esse sentir desenfreado, antes de qualquer acontecimento. É também um pacto com os ventos, que chegam soprando o indecifrável no ouvido, arrepiando a pele, e que só apazigua o corpo quando escuta a voz do filho. É amar com os olhos. É despertar para te dar o primeiro beijo do dia; correr pra te pegar na escola, com a urgência dos sentidos; achar você o menino mais cheiroso das cercanias do Ceará, todo sujo do futebol; fingir que esqueci de colocar o despertador, quando você acorda depois do recreio remoto; é admirar o seu amor pelos tiranossauros e os seus sonhos de que será um grande paleontólogo; é ver você desistir dessa bela profissão para ser jogador de futebol, detestar a ideia, mas aprender os nomes dos atletas e tentar ver graça no Gabigol.
No dia que te vi, filho, pela primeira vez, estreei como mãe, mas para construir a tessitura dessa rede de afetos, levou tempo. Eu menti ao dizer que desisti de ter outro filho naquela conversa com minha amiga. Foi porque no fundo, no fundo, eu intuía que jamais conseguiria amar alguém como amo você! Um amor que não se disfarça, que é composto por uma polifonia de sons e acordes, que é o que é, até quando fujo para assistir meus filmes antigos, escondida, sonhando com outros tempos e, inadvertidamente, lembrando como era bom também antes de você!
Paula Brandão é professora da UECE, doutora em sociologia e pesquisadora na área de gênero, gerações e sexualidades. Está no Instagram.