O riso da cara e o siso do sangue
Três filmes para amarrarmos firme ou desatarmos lentamente os laços de sangue: com quatorze semanas de clube do filme e discussões que já apontaram para muitas e diferentes direções, nos sentimos maduras e confiantes o suficiente para escolhermos histórias que se propusessem a nos dar muito mais do que um almoço ensolarado de domingo, do que declarações de admiração e felicitações de aniversário, do que homenagens públicas de afeto afetado, álbuns empoeirados de fotos, bailes de debutante, bodas e batismos.
Foram as mãos de Tonho que pegamos emprestadas: foram as suas unhas sujas e roídas que usamos para começar a descascar a imagem santa e sacra do barro de que são moldadas, em nós – ao longo de toda uma vida – as ideias corporizadas de família, lar, parentesco, semelhança e identificação. No primeiro filme, Abril foi despedaçado – e, com ele, rememoramos cada mês dos aniversários de cada um dos nossos pais, mães, irmãos, primos, tios e avós. Um mês para cada um e, dentro deles, um dia reservado para a celebração da vida daquele que chegou para se somar ao clã. Que vida levava Tonho, condenado a repetir, entra ano sai ano, a sina e a sanha que ele não entendia de onde vinha e para que fim se destinava? Feito gado obediente, Tonho girava a roda de madeira do tempo e, envelhecendo, condenava os genitores a envelhecerem ainda mais. Tudo era repetição – sem começo, sem final – pois quanto mais profunda a terra agrária, mais o sangue se empedra no chão. A família que marca o nome no solo condena o filho a se transformar no pai: quem nasce, nasce velho. Quem morre, há muito tempo já não vivia. Há famílias que se perpetuam ao cristalizar o tempo – os mesmos assentos, inertes e imóveis – ocupados por almas passantes sem rosto e sem voz.
Quando começaram os Incêndios – nos queimamos com as brasas que ardiam na sola dos pés de um estranho – pés tatuados e torturados que nos levavam, ao mesmo tempo, para o passado e para o futuro. Nawal – como uma mulher ouroboros – era o centro de um nó familiar que nunca seria laço e que nunca seria desatado. Os seres humanos perpassados por guerra, dor, humilhação e desprezo, recebem como herança a condenação perpétua de viver com seus próprios pesos morais, de seguir costurando suas linhagens destorcidas, de abraçar as escolhas que não foram feitas, atirados à roda viva do acaso – ao ocaso, à revelia. Tudo era dor – de onde essa família vinha e para onde ela se destinava – pois quanto mais violenta a terra bélica, mais o sangue se encharca e impregna sobre o chão.
E de que servem as mãos que trabalham se elas não abraçam e protegem? E de que servem os pés que se mantém de pé, se eles não saltam em defesa e proteção da cria? E de que serve o tronco de uma árvore genealógica se ele é oco e sua seiva é seca? Era o coração de Lion que nos faltava – suas veias aéreas que bombeavam, mesmo a milhares de quilômetros de distância, sua vontade humana e sobrenatural de viver e de ser e de pertencer. Tudo era potência – de onde ele vinha: a força da sobrevivência. Onde ele estava: a força do amor. Pois quanto mais arável a terra, mais o sangue corre nas artérias, mais ele vibra nas têmporas, mais ele nos viceja. E é essa a força invisível que carregamos em vida: os ancestrais, feito raízes que nos nutrem debaixo da terra, nos permitiram chegar até aqui e florescer, rasgando o chão firme, plantando nosso lugar. Os descendentes, feito sementes que lançamos ao vento, que serão brotos, que serão folhas, que serão frutos. O que serão? Não sabemos – o que nos cabe é regar o solo e esperar pela colheita que põe o pão na mesa e a força nos ossos.
Somos, todos nós, o passado encarnado pela herança genética e pelo regimento obediente das lições sobre a vida que recebemos dos nossos pais – mas, também, somos a vontade de ser o único e soberano regente da nossa própria história. Somos a tensão da corda que se estica até nossos mais remotos antepassados e o dardo que se lança mundo afora, na vontade diária de fazer do porvir nossa semente de autoconstrução e identidade. Emoldurados nas paredes, os retratos de família nos vigiam? Nos abençoam? Nos relembram, diariamente, de que agora é nossa vez e que, nesse espaço de tempo que eles abriram para nós, estamos e somos tão livres quanto sozinhos para entalhar nossos próprios rostos que, um dia, também estarão imóveis nas paredes das casas/memórias.
O que significa ser um filho, que também se transformará em um pai? O que é ser uma mãe, que um dia já foi filha? Quem são esses irmãos e irmãs – tão diferentes quando juntos e tão parecidos quando distantes? Qual o momento exato em que vamos vestindo e desvestindo peles e máscaras junto aos papéis determinados que nos dizem quem cuida, quem manda, quem obedece, quem cobra, quem deve, quem fica e quem deve partir?
Honrar nossa árvore genealógica. Voar para longe do ninho. Perpetuar o sangue e o sobrenome nos nossos próprios filhos e errar diferente. Extinguir nossa linhagem pelo medo de errar. Não nascemos uma página em branco – a família nos escreve o prefácio. Que apresentação escreveremos para as futuras gerações? E isso nos importa? E isso importava aos nossos tataravôs e tataravós quando esses faziam suas escolhas e quando engoliam suas vontades em favor da lei da vida?
É do seio do lar e da trama familiar que germinam nossas memórias mais ternas e nossos traumas mais excruciantes. Somos esse enquanto, esse galho esticado a partir das gerações passadas, do presente que exige e do futuro que ainda não madurou e, cabe a nós e somente a nós, extrairmos dessa tensão as notas, o som e a melodia que nos façam dançar, sorrir ou chorar, entendendo que – seja através de laços ou de nós – estamos e estaremos, perpetuamente, atados pelo sangue: sangue esse que sempre irá nos identificar, mas se esse sangue será o fator primevo que irá nos definir – é aí que germinam os galhos, as folhas, as flores e os frutos onde mora a nossa mais fiel e solitária responsabilidade de escolha e de vida.
Os três filmes:
Abril despedaçado (2001)
Incêndios (2010)
Lion (2016)