Bemdito

Pela abolição dos shopping centers

A relação entre o assassinato no Iguatemi de Fortaleza e a democratização das cidades
POR Rodrigo Iacovini
Foto: Gentil Barreira/Divulgação

Na noite de sexta-feira, 20 de agosto, grupos de WhatsApp e Instagram, além da timeline do Twitter, começaram a ser inundados por notícias sobre o assalto que levou à morte de uma vendedora no shopping Iguatemi, em Fortaleza. Fui também um daqueles que, assim que viu a notícia, compartilhou em alguns destes grupos. Por quê? O que nos levou a compartilhar rapidamente a notícia? 

Falando por mim, acredito que um misto de susto e surpresa me levou a enviar a notícia para amigos e parentes com quem compartilho a familiaridade com o local. A quem foi adolescente no final da década de 1990 e início dos anos 2000, marcar o encontro da turma em frente à Bonbom Box – loja de doces, referência na época – era o #sextou de toda uma geração. 

Não que não existisse vida para além do Iguatemi e outros shoppings como Del Paseo, Aldeota e Benfica; havia tardes e noites no Dragão do Mar, na Ponte Metálica, na Beira Mar, nas barracas na Praia do Futuro. No entanto, a combinação da preocupação de pais e mães com a segurança dos adolescentes e a concentração de espaços de diversão e consumo – como cinemas, lanchonetes, livrarias, jogos, lojas de doces e roupas, etc – tornavam então shoppings muito atrativos para todos nós, pais e filhos brancos, de classe média e alta. 

Se a soma de horas da minha vida em que passei em shoppings não é maior do que a de horas curtidas na praia, com certeza é maior do que aquela em que aproveitei parques, praças, calçadões e outros espaços públicos afins. Embora o Del Paseo tenha sido um forte concorrente, já que sediava o Game Station e consequentemente meus dois esportes favoritos – sinuca e air hockey -, um percentual altíssimo dessa soma de horas certamente foi gasto no Iguatemi, com seus cinemas, livrarias e praças de alimentação espalhadas por suas partes “velha”, “nova” e “novíssima”. 

Tenho inúmeras histórias engraçadas, tristes, românticas que tiveram o shopping como palco – de brigas na fila do cinema para conseguir bons lugares na estreia do último filme da trilogia O Senhor dos Anéis à realização de amigos secretos a jato, no qual a turma toda se reunia, sorteava seu amigo secreto e dispunha de apenas uma hora para a compra do presente, enquanto todos tentavam se esconder e despistar os outros que também faziam suas compras no mesmo local. Meu primeiro beijo no cinema foi lá também. E foi nesse lugar tão familiar que ocorreu o assassinato.

“Cidade dos muros”

Além da familiaridade, arrisco dizer que também contribuiu para a reação à notícia o fato de ser um lugar em que as classes média e alta brancas de Fortaleza não esperam estar em risco. Pelo menos desde a década de 1980, temos investido tempo, recursos e esperanças nos enclaves fortificados, como denominou Teresa Caldeira em seu livro “Cidade dos Muros”.

Para a antropóloga, os enclaves são “espaços privatizados, fechados e monitorados, destinados à residência, lazer, trabalho e consumo. Podem ser shopping centers, conjuntos comerciais e empresariais, ou condomínios residenciais. Eles atraem aqueles que temem a heterogeneidade social (…)”.

Em geral, os enclaves são propriedade privadas destinadas ao uso coletivo, mas essa dimensão coletiva não é universalizante, sendo reservada a um grupo seleto e socialmente homogêneo, excluindo grupos indesejados, como “marginais”, pobres, sem-teto.

São demarcados por grades, muros e outros elementos arquitetônicos que os tornam isolados do restante do tecido urbano, o que é reforçado pelo fato de serem voltados para seu interior, para suas praças e outros espaços públicos internos. O acesso a esses espaços é controlado, e a circulação, constantemente monitorada por sistemas e equipes de segurança privada, as quais atuam sob regimentos e regras do próprio estabelecimento. Soa familiar para vocês?

Como Teresa Caldeira demonstra em sua obra, um clássico do tema, a constituição desses espaços ocorre no âmbito de um processo de negação e ruptura com o restante da cidade e de seus espaços de livre circulação.

Ao mesmo tempo, sua disseminação – que vai além dos shoppings e está também na proliferação de condomínios residenciais privados com uma coleção de serviços, equipamentos e espaços comuns – reforça esse mesmo processo, ao rejeitar a dimensão pública e heterogênea das ruas, transformando o enclausuramento, o isolamento, a restrição e a vigilância em símbolos de status.

Segurança e racismo

A notícia do assassinato decorrente de assalto no Iguatemi nos assusta justamente porque aponta a falibilidade dessa proposta. A despeito da imagem de oásis urbanos que tentam vender, estes espaços continuam imersos em nossa sociedade e, portanto, submetidos às dinâmicas sociais, políticas e econômicas do restante da cidade. 

A ocorrência também coloca em xeque a crença quase naturalizada hoje de que a gestão das cidades – e nesse caso, da segurança – seriam mais eficientes se deixadas ao setor privado. Ao ler a notícia do assalto em um grupo de WhatsApp, uma amiga comentou ironicamente que qualquer pessoa consegue entrar armada com facilidade nos shoppings, enquanto a equipe de segurança está focada em controlar pessoas que entram para pedir dinheiro. 

O comentário denota dois pontos importantes: 1) como realmente esperamos que a gestão desses espaços seja diferente em relação ao restante da cidade, que se tenha um controle maior de acessos e, assim, de questões de segurança; e 2) como todo o aparato de controle privado desses empreendimentos realmente acaba enfocando em determinados sujeitos, aqueles considerados não pertencentes a estes espaços, os indesejáveis, os “outros”. 

Se os shoppings são considerados lugares relativamente seguros por famílias brancas de classe média e alta, não representa o mesmo para pessoas negras e pobres, quando tentam circular por seus corredores e praças sem a vigilância racista e discriminatória dos agentes de segurança. Elas são consideradas suspeitas simplesmente por existirem e transgredirem (quando conseguem) as barreiras sociais invisíveis que determinam que aquele não é seu lugar. 

Embora essa discriminação seja claramente uma expressão do racismo, ela também aponta para os limites do próprio modelo de cidade expresso e reiterado pelos shopping centers. Ainda que todo aparato de segurança deles passasse por um profundo processo de treinamento antirracista, a discriminação e a desigualdade persistiriam em outras dimensões da experiência que oferecem, já que são elementos constitutivos desses espaços, os quais apenas existem com base na diferenciação de status social que oferecem.

Radicalizo o argumento: não caiamos na armadilha de reivindicar shoppings mais seguros, pois cidades justas e livres de discriminação apenas serão possíveis quando abolirmos o último shopping center. A convivência com o outro, com o diferente, é a base da nossa democracia e da construção de espaços urbanos vibrantes, inclusivos e solidários, sem os quais não há qualquer perspectiva possível de uma cidade realmente segura.

Rodrigo Iacovini

Doutor em Planejamento Urbano e regional pela USP, é coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City.