Quem gosta de segredo?
Atribui-se ao juiz da Suprema Corte americana, Louis Brandeis, a frase “a luz do sol é o melhor desinfetante”, apesar de alguns falarem que a expressão já era popularmente conhecida. Brandeis apenas a teria levado para o tribunal. De uma forma ou de outra, é uma frase que tem um forte impacto. Ela foi dita no contexto de dar maior transparência ao sistema financeiro norte-americano, no início do século XX. Hoje, podemos usar a frase do juiz para diversos objetivos, entre eles, a transparência pública.
A publicidade dos atos da administração pública é um importante elemento do Estado democrático de direito. Quando falamos em publicidade dos atos, não é aquela propaganda oficial ou mais ou menos oficial, mas, sim, a informação, aquilo que as pessoas precisam saber, até para exercer algum tipo de controle sobre o Estado. Sem publicidade, não temos como saber onde os governantes erram e como erram. Não temos como cobrar. A publicidade é importante porque é com ela que o Estado é de fato democrático e republicano.
A Constituição Federal, em diversas passagens, assegura a todos o direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse, seja ele particular ou coletivo, tanto faz. E, diante desse direito, é dever, sob pena de responsabilidade, que a informação seja prestada, nos prazos da lei.
No finalzinho do inciso XXXIII, do artigo 5º da Constituição, há uma pequena ressalva – portanto, exceção, e não regra. Inclusive, o próprio texto constitucional não deixa margens para pensar diferente, a palavra usada é “ressalvadas”. Pois bem. No finalzinho do referido inciso, há a ressalva àquelas informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Repito, a palavra “ressalva” deixa claro que é uma excepcionalidade. E essa excepcionalidade só comporta aquelas informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. A repetição é necessária para ficar claro o tom que a Constituição imprimiu no seu texto: a regra é a publicidade.
Não satisfeito apenas com o artigo 5º da Constituição, o constituinte também reservou um espaço lá no seu artigo 37 onde reitera que a lei disciplinará como as pessoas irão participar da administração pública – e que será nos moldes do art. 5, referido acima. Portanto, mais uma vez, ficou claro: a regra é a transparência.
Mas parece que a Constituição queria deixar mais claro ainda e, lá no artigo 216, já no finalzinho do texto, mais uma vez, afirma que a administração pública irá gerir a documentação governamental, porém, permitir a sua consulta a quem necessitar.
Além de a Constituição falar tudo isso, a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 2011) regula todo esse acesso à informação. Regula o acesso, mais uma vez, deixando claro o que é direito à informação. No artigo 3º, a lei acaba com qualquer dúvida, se é que, depois de tudo o que já falamos, ainda existe alguma. Neste artigo, a lei afirma textualmente que a publicidade é um preceito geral e o sigilo é exceção.
Tanto se afirma, desde 1988, sobre publicidade e a sua relação direta com a democracia, porque é permanente a necessidade de se ter um governo às claras. Mas, ao que parece, é preciso reafirmar mais ainda. Em 2019, por meio de decreto, o governo federal ampliou o número de pessoas que podem declarar sigilosos os documentos, contrariando a ideia veiculada na Constituição e na lei. Por ação da oposição, o decreto caiu.
Recentemente, alguns casos chamaram a atenção. O Exército impôs sigilo ao processo que apurava as andanças políticas do general Pazuello, porém, justificou, informando que não proibiu nenhum acesso, apenas aplicou a lei. Em janeiro de 2021, foi declarado também o sigilo da carteira de vacinação do presidente da República. Apesar de o presidente negar que exista sigilo, a Presidência negou o acesso à informação ao jornalista Guilherme Amado.
Por último, a polícia do Estado do Rio de Janeiro atribuiu sigilo às informações referentes à operação policial na favela do Jacarezinho, tema de outra coluna aqui no Bemdito. Em meio às investigações para entender o que aconteceu realmente e o que vitimou tantas pessoas, a decretação do sigilo por cinco anos prejudica toda a apuração de responsabilidades e impede o precioso desinfetante defendido por Louis Brandeis. Ao mesmo tempo em que realiza umas das ações mais letais, a corporação impede que a sociedade tome conhecimento do que aconteceu, do que causou tantas mortes. Impede assim o controle social. A quem interessa o sigilo sobre a ação policial do Jacarezinho?
Curiosamente, o mesmo Brandeis também ficou conhecido por defender o direito à privacidade, que não deve ser confundido aqui. Ao passo que a intimidade se relaciona com a nossa vida privada, a publicidade se relaciona – e, como vimos, é regra – com as ações do estado. Confundir o público com o privado, decretando sigilo onde há interesse público, é privilegiar a escuridão e desprezar a clareza que deve revestir os atos da vida pública. Quanto mais opaca a sociedade, mais corrupta, covarde, cruel e antidemocrática.