Ser pombo outra vez
Eu fritava na areia quando o pombo me encarou.
A orla estava vazia para um sábado de carnaval e minhas filhas, metade meninas, metade sereias, corriam e acenavam para mim.
Gaivotas são raras na Praia de Iracema. Às vezes, surge uma intrusa e logo os pombos a cercam com seus peitos inchados como se ela fosse uma gringa no samba. A intimidação sempre surte efeito e a desavisada volta para Noronha ou Angra dos Reis, patricinha não tem vez na comunidade dos pombos cearenses.
Abri a mochila, procurei algo para comer e percebi a posição de ataque do pássaro que me encarava com ar de quem comeria até meu fone de ouvido, caso eu me distraísse. Fechei o zíper com pressa e abanei os braços com violência. Xô!, gritei sem necessidade, ele já tinha desistido de me enfrentar, um sabugo de milho roído seria sua próxima vítima. Segui o malandro com os olhos. Ele voou baixo até o alvo, mas, antes de aterrissar, outros arruaceiros chegaram. Cada um dos pombos puxava para si o sabugo maltratado e valia tudo naquele ringue: abanar as asas, dar cabeçada e bicar o oponente.
Enquanto eu mudava de posição para olhar melhor os golpes baixos aplicados, um grupo de adolescentes que estava na barraca ao lado posicionou uma caixa de som em minha direção. Essas pequenas missionárias de poluição sonora deveriam ter a venda proibida, pensei.
Há quem diga que eu dormi de touca
Que eu perdi a boca, que eu fugi da briga
Que eu caí do galho e que não vi saída
Que eu morri de medo quando o pau quebrou
Escutei o clássico de Ney com alívio e vi que meu corpo brilhava de suor e areia. Procurei o pombo em meio à multidão de seres alados, ele era cinza e mancava da pata direita. Se você reparar bem, até os pombos são diferentes.
A luta do século se desenrolava e o milho era quem mais apanhava, até que eu-quero-é-botar-meu-bloco-na-rua me levou ao carnaval passado.
Nós, foliões, nos esfregávamos exatamente como aquele bando de pombos, alguns tinham até penas. Nosso alvo era bem previsível, bastava passar um vendedor ambulante gritando cerveja geladinha que o vuco-vuco começava, mesmo a gente sabendo que a cerveja estaria tão quente que poderia ser servida em uma xícara de café.
Durante o ciclo carnavalesco, num passado saudoso, pairava sobre a Beira Mar uma enorme nuvem de vapores: maresia, sovaqueira e xixi. Éramos escorregadios de tanta umidade. Os blocos passavam arrastando a maré de corpos e o calor grudava as roupas, as purpurinas, as bocas.
Nada importava, desde que o tumtumtum da percussão nos lembrasse de que a catarse coletiva era nossa cura: sambando éramos destemidos faraós. Cavaquinho, pandeiro, reco-reco e tamborim eram os catalizadores da felicidade, ainda que Jorge Ben me lembrasse que o carnaval foi triste para mim. O som da bateria se misturava aos gritos desafinados dos bêbados e pulávamos abraçados, dançando com estranhos e comungando das latinhas de boca em boca. Saliva não era assunto científico, era só saliva.
Escutei um bater de asas. O pombo tinha voltado vencido para perto de mim e portava mais um traço de identidade: um arranhão lateral no bico. Ele encontrou uma latinha de cerveja e, antes de eu praguejar o salafrário que deixou lixo na praia, vi que ele tentou furá-la, mas a bicada deve ter doído, desistiu fácil. Tive vontade de ajudá-lo, o coitado estava com sede e conheço bem esse sentimento. — Mamãe, vamos pra casa?, minhas filhas lembraram que eu existia, a maré estava enchendo. Levantei, sacudi a areia, mas a volta por cima só darei quando eu for pombo outra vez.