Bemdito

Sobre os livros que não vou ler

É preciso reconhecer que não vai dar tempo de ler todos os livros que se gostaria
POR Cláudio Sena
Foto: Eugenio Mazzone

Não vai dar tempo. Foram tantas as circunstâncias que me levaram a esta suspeita que, cada vez mais, confirmou-se depois. Esperado. Lendo sinopses sempre fracas para filmes piores ou muito melhores na Distrivídeo. Na Tok Disco, via-me aperreado e curioso, fuçando CDs (que já foram fitas cassetes e vinis em épocas também vividas) na tentativa de ouvir um pouquinho sem pagar por tudo. De todos os endereços, era principalmente nas bibliotecas e livrarias, rodeado por quilômetros de prateleiras preenchidas, que eu suspeitava: é demais para uma vida. 

Ao contrário dos espaços de fluxo de passagem e impermanência, como aeroportos, hipermercados, estações de trem, exemplos de não-lugares propostos pelo antropólogo Marc Augé, creio que alguns de nós reservamos, quando possível, uns tais “ambientes de permanência”. Locais não exatamente de espera, mas de proposital demora.

É quase casa. Para não falar com quase ninguém, mas onde a cabeça está ativa num possível carnaval entre nossos próprios neurônios. Onde associações e reflexões dão-se, talvez pela sobra de conhecimento impressos em páginas ou pela falta de distração acumulados quando resistirmos a sacar o celular para aproveitar a aura local. Por mais que avancemos na exploração de saberes, não chegamos nem perto do suposto fim. Lembro-me da cena: eu abrindo a porta de uma das três bibliotecas que frequentava em Lyon e deparando-me com cinco andares de livros. Desisto. Depois insisto. Há lá centenas de livros de etimologias, etnografia, etnia, etimologia, isso só para ficar no prefixo “et”. 

Estante empilhada em casa

Mas, como se não bastassem estes repositórios do saber, ainda tem a estante de casa, onde empilham-se livros que continuo – e vou continuar – comprando, mesmo que me arrependa, mesmo que se acumulem solitários e empoeirados, pedindo faxina em vez de traça. Fora os downloads e as pastas que se multiplicam nos HDs, porque nem a cabeça nem a estrutura da casa suportam mais. Seria bom se fosse só isso. E o resto da vida? Família, trabalho, almoço e louça. Assim fica difícil até para os mais bravos dos Dom Quixotes encarar os moinhos da vida realíssima recheados de afazeres. Quando se tem tempo, silêncio, temperatura e pressão adequadas, falta a cabeça.

A leitura vai ficando de lado, acumulada ou esquecida. Não há Kindle e Kobo que dê jeito. Entre as páginas do tomo 1 de qualquer um destes livros grossos, lembramos de descongelar o frango. Uma boa dose da fria realidade para quebrar qualquer clima de romance infantil entre Capitu e Bentinho. 

Vez por outra a gente vence, descobre à força umas horinhas e consegue dedicar-se à leitura, ato sagrado, por mais besta que seja o texto. Mesmo assim, parece ainda não ser suficiente. No meu caso, Tolstói, Proust, Santo Agostinho, Woolf e tantos outros me observam como se falassem pelas capas de edições lindas ou nem tanto. A propósito: vamos deixar os acadêmicos fora disso, por questões de simplificação e de limite de texto desta coluna. Porém, eles e elas também estão entre nós.

Ironicamente, termino este texto com a moral da história: eu, você e os que simplesmente gostam de ler vamos ter de escolher. E para você que julga os outros pelo que leem, lembre-se: os julgados também tiveram de escolher, por opção ou por forças de inúmeras circunstâncias da vida – circunstâncias estas que não se preocupam nem um pouco com o nosso intelecto e com o nosso lazer. 

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.