Uma prece pelas meninas tristes
Começou com Cecilia Lisbon, a mais nova das irmãs. Nas primeiras páginas de As virgens suicidas, romance de Jeffrey Eugenides, temos a imagem da garotinha flutuando na piscina rosada da água da banheira, com os pulsos cortados e a expressão tranquila de um estoico. É também nas primeiras linhas do livro que ficamos sabendo que cada uma de suas irmãs adolescentes havia seguido seu exemplo e cometido suicídio em sequência.
A primeira tentativa de Cecilia foi mal sucedida e seus pulsos rasgados foram remendados com pontos e torniquetes. No hospital, o médico que a atendeu segura o queixo da menina com delicadeza e pergunta: “O que você está fazendo aqui, meu bem? Você nem tem idade para saber o quanto a vida pode se tornar ruim”. Foi quando Cecilia forneceu oralmente aquela que seria sua única forma de bilhete de suicídio: “É óbvio, doutor”, ela disse, “você nunca foi uma menina de treze anos”.
Jeffrey Eugenides é um dos maiores ficcionistas americanos em atividade. Se foi por Middlesex que o autor venceu o Prêmio Pulitzer, foi o seu As virgens suicidas que o consagrou como um ourives da palavra. Raras vezes vi tanto controle da linguagem, tanta precisão de sentido e tanto lirismo quanto nesta fábula sobre a inocência perdida.
Ambientado em um subúrbio dos Estados Unidos dos anos 70, o livro é narrado pela voz coletiva de um grupo de garotos, então adultos, que foram vizinhos das irmãs Lisbon e viviam fascinados por sua beleza e por seu isolamento. Como é próprio das pessoas obcecadas, os rapazes reúnem os mais diversos e implausíveis elementos. Entrevistas com vizinhos, diários, caixas de cosméticos, um absorvente na lixeira do banheiro formam uma espécie de arqueologia do caos feminino em que viviam as garotas. O livro recebeu adaptação cinematográfica pelas mãos de Sofia Coppola.
Se a beleza das meninas Lisbon fornecia a força de Eros à imaginação dos garotos, seu suicídio sem maiores explicações acrescenta ao Eros a mão sombria de Thanatos, elevando as irmãs a um patamar mítico. Enclausuradas pelas severas restrições morais e religiosas da mãe, que progressivamente se tornaram cárcere doméstico, a miragem deslumbrante das Lisbon impediu os garotos de perceberem que as irmãs reais precisavam de ajuda.
Diz um dos narradores: “Pensando em retrospecto, concluímos que as meninas tinham passado o tempo inteiro tentando falar conosco e pedir nossa ajuda, mas estávamos apaixonados demais para ouvir. Nossa vigilância tinha sido tão concentrada, que não deixamos passar nada, exceto um simples olhar devolvido. A quem mais elas poderiam recorrer? Não aos pais. Nem aos vizinhos. Dentro de casa, eram prisioneiras; fora dela, leprosas. E assim se esconderam do mundo, esperando por alguém — nós — para salvá-las.”. Costuma-se dizer que prestar atenção e amar são, na verdade, a mesma coisa. É este dado que assombra os garotos. O fascínio impediu a atenção.
Sendo eu mesma uma menina triste, que sempre inalou a própria melancolia como a fumaça de uma brasa quente, as perguntas subjacentes ao romance de Jeffrey Eugenides me interessam: O que estamos fazendo a respeito da dor feminina além de romantizá-la, venerá-la ou naturalizá-la? De que forma podemos dialogar com essa dor para que o destino das mulheres não seja um destino trágico? Nós estamos atentos como se deve às feridas escondidas sobre o coração ou visíveis na pele?
Se Durkheim estava correto em sua acepção sociológica clássica sobre o suicídio como fato social, dotado de forte coercitividade, talvez as meninas Lisbon não tivessem tanta alternativa assim. Eugenides parece concordar, quando afirma: “No fim das contas, as torturas que despedaçaram as meninas Lisbon apontavam para uma simples e fundamentada recusa em aceitar o mundo que lhes tinha sido entregue, tão cheio de falhas”. Em uma das mais belas passagens do romance, um dos narradores conta o seguinte sobre Lux Lisbon: “Durante a eternidade em que Lux Lisbon o encarou, Trip Fontaine devolveu o olhar. O amor que ele sentiu naquele momento, mais verdadeiro que todos os amores subsequentes, porque nunca precisou sobreviver à vida real, ainda o atormentava, mesmo ali no deserto, com a aparência e a saúde devastadas”.
Gostaria de ter esperança de que as Lisbon que andam pelo mundo possam ter outro destino que não o de existirem como fantasmas na lembrança de homens atormentados. Que o amor por elas possa sobreviver à vida real. Que este mundo cheio de falhas, que para as Lisbon e tantas outras garotas tristes se torna frequentemente insuportável, possa se alterar para acolher as mensagens que elas têm a comunicar, as vidas que desejam viver. E, acima de tudo, tenho esperança de que possamos levar mais a sério o que significa ser uma menina de treze anos.