Bemdito

Vida e morte entre golpes

Sobre as ausências que permanecem, como lembranças da vida não vivida
POR Glória Diógenes
Henrique Viudez

Só sai do abismo quem sabe voar. 

“O Alegre Canto da Perdiz”, Paulina Chiziane

Nunca pude te contar. Havia uma centelha de esperança quando você veio. Era agosto de 1977. Confundi os primeiros sinais de enjoo com algum tipo de “verme” ou mal do estômago. A vizinha zombava quando eu dizia que a barriga crescia. O mundo lá fora era confuso Raquel, fazia esvanecer sinais de esperança, exigia astúcias para as armadilhas diárias. Os “anos de chumbo” atingiam peles, suspendiam gestos, calavam vozes. Seja pela tortura, pelo desalento, ou pelo sumiço de cada um de nós fora e dentro de si. A voz rouca de Belchior dizia tudo em um só verso – vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil. Foi também o ano do Coração Selvagem.

O golpe militar que se iniciou em 1964 no Brasil, estava a terminar. Mesmo diante dos atos institucionais e dos “pacotes” do governo, ventos traziam prenúncios dos movimentos de contestação. Você viria após mais de uma década sem qualquer liberdade de expressão no país. Muitos de nossos amigos, familiares que lutaram por reverter, derrubar o tal governo, desapareceram. Outros foram obrigados a viver escondidos, ou pedir asilo em outros países, tendo que abandonar o que construíram. 

Era assustador. No Brasil do “ame-o ou deixo-o”, qualquer um, a depender da atitude, vestimenta, das formas de aglutinação, dos livros que lesse, das canções que escutasse, poderia ser classificado como subversivo e identificado como ameaça ao sistema. Para conservar-se vivo, era preciso ser astuto minha filha, falar baixo e bem mover-se entre corredores da repressão. Tua vinda seria uma nova terra. Um lugar intocável, a salvo dos dedos duros do poder e das botas do arbítrio.

No início de 1977, sua mãe entra no curso de Ciências Sociais. Nada fácil. Injustificável para um político, no caso seu avô, que integrava os quadros do partido que sustentava a ditadura, a Arena – Aliança Renovadora Nacional. Ciências sociais, para ele e muitos da época, não era profissão, era lugar de contestação, de doutrinação política. Fui percebendo Raquel que os governos de mando, centralizados na figura de um ditador, têm apreço pelas mesmas palavras e coisas: o símbolo da bandeira, os variados tons de um discurso nacionalista, o apelo a Deus e a religião, a exaltação da família, e a difusão do terror. 

Você encontraria uma mãe romântica. De um lado, a nítida visão dos porões da pulsão de morte. De outro, a escuta nas “bocas” e nos “becos” das canções de insurreição. Te diria, assentada no meu colo, que qualquer janela lacrada guarda brechas de luz. Havia dias claros. Na mesa de um almoço domingueiro, cantei para a família a nova canção de Chico e Hime: Anda trigueiro, te esconde, colibri. Voa, macuco. Voa, viúva, utiariti. Bico calado, toma cuidado, que o homem vem aí”. Gente que acredita no uso da força não tem manejo com miudezas. Ninguém percebeu prenúncios de voo. Há antolhos na vista dos que habitam o raso.

Conheci um livreiro comunista, o Batista Neto, que me repassava obras proibidas pela censura. Li “o Manifesto do Partido Comunista” dentro de uma revista Capricho. Você teria tido orgulho. Seu pai foi vice-presidente do primeiro Centro Acadêmico de medicina e sua mãe das ciências sociais, reabertos após a ditadura.   

Nosso pequeno apartamento era frequentado por poetas, músicos, militantes que penetravam clandestinamente nas fábricas, com folhetos do marxista, antistalinista, Ernest Mandel. O lugar era quase uma célula da vontade de revolução. Nas almofadas espalhadas ao chão, escutamos Petrúcio Maia cantarolar “Cebola Cortada” – a cachoeira cantando, é a canção natural, sempre lembrando pra’ gente, que amar nunca faz mal.  

Por vezes, passávamos a madrugada jogando War, movendo exércitos na busca de conquistar o mundo. Eram minhas as pedrinhas amarelas. Preparei seu pequeno quarto com essa mesma cor. Prateleiras improvisadas, um berço doado e uma espera desajeitada. Preciso te dizer que, com apenas dezenove anos, mal se sabe de si, dos nascimentos, da vida que se move ao contrário. Escorre aqui um pedido de perdão.   

Na pequena máquina Olivetti, teclava até bem tarde os trabalhos do curso de sociologia. Recordo de ver o dia nascer “fichando” o livro do Paul Singer, sobre introdução à economia política. O tempo ainda não brigava com o corpo. No início de 1978, a barriga distanciava os olhos da tecla. Em cada página uma mistura de sono, cansaço e o contentamento com tua chegada. Havia tudo mudado tão rápido, a menina que temia a voz dos “homens”, se via diante da desajeitada maternidade.

Fui muitas vezes destrambelhada. Passeamos numa carroça (uma carona para a faculdade), cujo cavalo se desgovernou em plena Avenida Santos Dummont e caímos no asfalto. Em outra carona de moto, eu e a barriga imensa na garupa, queimei a perna no carburador. Chorei na sombra de uma mangueira dos jardins da Reitoria. Você veio junto com esse desassossego. No ímpeto de quem fala alto, ativa pés e pernas na direção do que nunca pressentiu. Nascemos juntas Raquel e você não ficou.  

20 de abril de 1978. Cenas de um filme que se repete, se repete e nunca define a trama, o fim. Uma película cujos personagens não emitem sons, cujas bocas se movem e se calam. A bolsa estourou. Praça da Igreja do Carmo e uma menina atordoada. Um táxi! Corre, meu senhor, para a maternidade escola. Doutor avisa o marido, os pais, por favor. Pede para não esquecerem da malinha com as coisas dela. Vem uma enfermeira escutar os batimentos, depois dois médicos, nada. Um fala para o outro, traz o sonar. Nada. Cadê você? Cadê nós duas? Você partiu sem sequer chorar a primeira respiração. 

Dor envolta em névoa, dessas que o corpo se ausenta. Havia guardado minhas bonecas para te dar, com roupinhas costuradas na agulha e linha. Poderia ter te conduzido no meu colo e nos salvado. Te digo, essa mulher que escreve, espera ainda a outra que chegará. Uma planta, um tipo de erva daninha, em forma de duplo coração, surgiu na jardineira de minha janela. Dou seu nome para esses acontecimentos, vestígios de nascimentos inesperados. Você brotou, depois foi secando. Até restar apenas gravetos sem mais nenhum verde. Insisti em conservá-los, teimando que algo renasceria do que ficou. Hoje, dois pequenos ramos despontaram.

Lá fora o tempo ainda é confuso. O ar tem cheiro de morte minha filha, mas o verde teima em brotar do mato arrancado. Assim como em 1978, o discurso do ódio já gagueja. Ano que vem, 2022, iremos às ruas, empunhar bandeiras, gritar alto, até que a utopia espante o mal – fora genocida. Duas mulheres permanecem em dueto. Elo ancestral de outras que não puderam nascer. 

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).