“Zara zerou” e a extinção dos shoppings centers
Um lado bom de escrever sobre cidades é que nunca falta material. Mesmo quando um assunto já foi abordado, sempre há um acontecimento novo ou outro ângulo que pode ser explorado. Aqui mesmo, no Bemdito, tive a oportunidade de abordar, há exatos dois meses, como shoppings centers são obstáculos à promoção de cidades justas e inclusivas. Nessa última semana, uma nova frase me possibilita retomar o tema e reforçar o apelo pela extinção dos shoppings: “Zara zerou”.
Em agosto, havíamos ficado chocados com o assassinato de uma funcionária no Iguatemi de Fortaleza. O episódio serviu de mote para demonstrar como os shoppings centers se valorizam a partir de processos sociais de diferenciação e discriminação, sendo constitutivos, portanto, de sua lógica de funcionamento. Faz parte de um processo mais amplo de auto segregação das elites brasileiras, as quais não apenas procuram se isolar cada vez mais em termos residenciais, como demonstra Nota Técnica publicada pelo Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo, mas também buscam se encastelar em bolhas luxuosas de consumo.
De maneira muito mais eloquente do que a minha, Raquel Rolnik também abordou recentemente o tema em episódio da série Incertezas Críticas , produzida pelo Canal Curta. No vídeo promocional da série, a urbanista consegue explicar em apenas um minuto como shoppings estão matando a vida pública para alimentar o complexo imobiliário-financeiro, que diariamente fagocita dinâmicas e porções cada vez maiores de nossas cidades.
Além da dimensão econômica, um dos exemplos que apresentei, na minha coluna de agosto, para ilustrar o caráter excludente do modelo urbanístico promovido por estes espaços era a prática notória e recorrente de discriminação racial por parte dos responsáveis pela sua segurança. São inúmeros os relatos de pessoas negras que foram ostensivamente monitoradas, questionadas e, até mesmo, violentadas pelos seus agentes de segurança.
Em 14 de setembro, ou seja, pouco mais de 3 semanas após a publicação da minha coluna, um desses casos de racismo foi destaque na mídia: uma mulher negra havia sido discriminada ao tentar acessar a loja Zara no shopping Iguatemi de Fortaleza. O mesmo shopping em que havia ocorrido o assassinato, a mesma situação que relatava de maneira genérica em minha coluna. Poderia ter sido apenas mais um caso dentre os inúmeros que todo dia acontecem e permanecem invisibilizados, mas a vítima deste caso é delegada e diretora adjunta do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis da Polícia Civil do Ceará.
A polícia constatou no decorrer da investigação, como noticiado por diversos meios de comunicação, que a loja na qual o crime havia ocorrido adotava um código para alertar seus funcionários da entrada de potenciais suspeitos no estabelecimento. “Zara zerou” indicaria a presença de pessoas negras e pobres às quais os funcionários deveriam ficar atentos.
É possível argumentar que o caso foi protagonizado por funcionários da loja, e não propriamente do shopping Iguatemi. Se, por um lado, é de fato necessário fazer esta diferenciação, já que o agente de segurança do Iguatemi aparentemente acolheu a reclamação da vítima e a acompanhou de volta até a loja; por outro, relembro que se trata de um episódio inserido num fenômeno maior.
Como havia alertado aos leitores em agosto, “não caiámos na armadilha de reivindicar shoppings mais seguros, pois cidades justas e livres de discriminação apenas serão possíveis quando abolirmos o último shopping center. A convivência com o outro, com o diferente, é a base da nossa democracia e da construção de espaços urbanos vibrantes, inclusivos e solidários, sem os quais não há qualquer perspectiva possível de uma cidade realmente segura”.
Não é coincidência que, no intervalo de algumas poucas semanas, ambos casos tenham ocorrido no mesmo shopping center. Não é coincidência que um exemplo vivo do que havia descrito em agosto tenha acontecido em setembro. Não é coincidência que todas as lojas da Zara nas cidades de Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Salvador e Porto Alegre estejam localizadas dentro de shoppings centers. Não é coincidência.