Navegação arruinada
Na última semana, tomei uma decisão que vinha adiando há tempos: deletei minhas redes sociais. Vez por outra, desativava minhas contas temporariamente, nunca todas ao mesmo tempo, sempre preocupado em deixar estabelecido um canal de contato com o mundo exterior. Quando deletava o Instagram, mantinha o Twitter. Quando me livrava do Twitter, sobrava o Facebook. Quando, finalmente, apagava o Facebook, reabria o Instagram. Fiz isso por muitos anos, incapaz de tomar a decisão definitiva, inventando desculpas para, de uma vez, romper com todos os laços.
Mas essa hora chegou. Cinco minutos de uma coragem repentina – somada a um enfado que vem se acumulando há meses – foram suficientes para deletar (e não apenas desativar) as três contas. Aproveitei o impulso e continuei a limpeza: Linkedin, Tumblr e, é necessário confessar, o TikTok, que me fazia gastar preciosos minutos em busca de vídeos engraçados para compartilhar com dois ou três amigos. O que mantive: Whatsapp (insuportável, mas ainda essencial por questões profissionais), YouTube (pelos vídeos de música que me distraem nas horas mortas) e o Reddit (meu eterno favorito).
Os cinco minutos de iluminação repentina vieram depois que vi o vídeo The day Facebook ruined the internet (“O dia em que o Facebook arruinou a Internet”), publicado pelo The New York Times no início do mês. O Estadão publicou em sua página uma versão legendada para o português do mesmo vídeo. Parece suspeito falar de um único dia quando, em seu calendário recente, o Facebook parece empenhado em arruinar a saúde de nosso ambiente virtual, mas a escolha do NYT é certeira: a internet foi arruinada pelo Facebook no dia 5 de setembro de 2006.
Foi naquele dia que o Facebook “deixou de ser uma biblioteca interativa de perfis individuais para se tornar um espaço customizado, fluido e organizado por algoritmos que chamou de Feed de Notícias.” Depois daquele dia, nossas interações sociais passaram a ser mediadas por algoritmos cada vez mais complexos, específicos e determinantes. Navegar pela internet, como costumávamos dizer no fim dos anos 1990 e início dos 2000, e que era sinônimo de uma exploração curiosa, perdeu seu elemento de surpresa e assombro. Hoje, navegamos por águas conhecidas e cada vez mais rasas.
No tempo do Orkut
Grande febre da Internet brasileira antes da chegada do Facebook, o Orkut teve êxito porque aprimorava os moldes clássicos dos ambientes de convivência virtual, reunindo-os em uma única plataforma e dando-lhes um aspecto mais moderno e organizado. Não havia feed no Orkut. Se eu quisesse ver as atualizações de um amigo, precisaria visitar seu perfil particular. Minha página inicial, estática, não era invadida, diariamente, todo o tempo, por atualizações filtradas e organizadas de acordo com uma análise matemática robotizada de meus gostos. A curiosidade do usuário inspirava sua navegação entre as ilhas de informação: agora, navego até meu amigo; agora, sigo até o fórum daquele assunto.
Entre essas ilhas navegáveis de conteúdo, as que mais tinham força eram os fóruns, que no Orkut ganhavam uma roupagem diferente, mais atraente para o usuário básico, mas que funcionavam sustentadas por estrutura semelhante a dos fóruns bagunçados e borbulhantes de nerds que até hoje se mantêm distantes do mainstream. Cada tema, cada artista, cada autor, cada piada, cada sensação ganhava uma página específica que se desenrolava em milhares de tópicos de debate organizados não pelo nível de interesse que poderiam despertar no usuário, mas pela data da última atualização.
Dito de outra forma, o oceano era o mesmo para todos. Transitávamos entre essas ilhas de conteúdo e nos cruzávamos no trajeto. Desses encontros, imprevisíveis, nasciam debates lógicos, estúpidos, racionais, delirantes, mas sempre surpreendentes. O que o Facebook estabeleceu naquele 5 de setembro de 2006 foi a atrofia desses espaços náuticos, limitando nossa navegação às paragens que já nos são conhecidas e que apenas confirmam nossa visão de mundo. Mais que isso, criou artifícios matemáticos para garantir que ninguém navegue pelo mesmo mar. Sustentado pela perigosa ideia de personalização infinita e exclusividade, destroçou qualquer possibilidade de encontro e surpresa.
Some-se a tudo isso a dimensão política e econômica da atuação desses grandes monopólios da Internet, uma perspectiva ainda mais problemática que a anterior e que poderia ser tema único para infinitos novos artigos. Reduzindo o escopo de nossa análise ao campo dos costumes, o que percebemos como resultado dessa missão falsamente estabilizadora das redes sociais é o que vemos todos os dias em nosso feed. Autoafirmação, vaidade, limitação de visões, comodismo, preguiça, ignorância, desinteresse pelo outro, narcisismo, dependência emocional e uma assustadora incapacidade para o debate.
Se busco na memória dos meus últimos dez anos, as pessoas mais interessantes que conheci estão fora das redes sociais ou não se importam com a poeira que se acumula em seus perfis. No sentido oposto, deixei de admirar amigos pelo modo narcísico, auto referente e autoritário com o qual se apresentam nessas plataformas. Deletei meus perfis para encontrar novas ilhas distantes. Também para redescobrir a essência de meus amigos por trás da pátina vaidosa do personagem que assumem em suas redes. Os algoritmos não vão definir meu destino.