“Terceira via”? Sobre o voluntarismo em política
Um dos grandes cortes sobre o qual está fundado isso que podemos denominar de “ocidente” é, em certa medida, a divisão entre contemplação e ação, entre pensar e agir, entre teoria e prática, ou, ainda, entre o projetar e os eventos. Se Hannah Arendt possui razão, a morte de Sócrates determinou a sorte da filosofia dita “ocidental” para marcar a tradição platônica a partir do signo de uma fuga face àquilo que, antes dele, poderia ser considerado como essencialmente político.
Ante a condenação de seu mestre (e sabemos o quanto o amor e o afeto homossexual eram considerados necessários no contexto da paideia), Platão foge do espaço público, cria a academia, torna-se ávido crítico da democracia (e dos sofistas) e desenvolve a sua doutrina “das ideias” (ou melhor, “das formas”, importante lembrar considerando um certo ranço contemporâneo às formas e aos formalismos), em diálogos primorosos, alguns dos quais ainda podemos ter acesso inclusive.
Essa cisão é o motivo (i.e., no sentido de motif, como na música, e não uma espécie qualquer de “fundamento”) que filósofos (e soi-disant pensadores em geral) recorrem com alguma insistência para definirem a sua relação com a política. Dentre as imagens mais famosas, temos a alusão à coruja de Minerva, em Hegel, por exemplo. A coruja de Minerva que voa no crepúsculo, no entardecer dos eventos, a partir de quando se torna possível a avaliação dos acontecimentos à luz de alguma perspectiva de completude e suficiência, retrospectivamente. Segundo essa lição, a contemplação começa quando o acontecimento termina.
Dentro desse contexto da cisão entre “teoria” e “prática”, um dos grandes problemas filosóficos (e um problema que vai se apresentar sempre de forma cada vez mais trágica a contar da nossa modernidade) é aquele do voluntarismo na política. Se teoria e prática são sumamente distintas, supõe-se ainda assim que a política é assunto de projeto e de uma vontade consciente de fazer esse projeto se tornar realidade. Isto é, fazendo jus à tradição hilemórfica que caracteriza todo moralismo, esse voluntarismo entende que a teoria concede a matéria que a prática irá formatar.
O voluntarismo crê determinantemente na agência do sujeito e na sua capacidade de determinar os acontecimentos, de modo consciente, tal qual um artífice face a um pedaço de argila que se propõe a fazer um vaso. Crê que tudo é questão das possibilidades conformadas a partir das vontades que subjazem às ações políticas. Crê, em suma, que a vontade é fons et origo das mudanças políticas.
Daí as utopias, ou melhor e mais precisamente, especialmente a contar do último quartel do século XX, da crise das utopias. Os pensadores da geração contemporânea são tidos por inadequados, por insuficientes, por incapazes de pensar um outro projeto de vida. Entende-se que haveria uma falta consubstancial associada a eles, na medida em que as antigas ideologias não foram substituídas por outras igualmente fortes. Que bastaria pensarmos um novo projeto, supor um novo consenso, sugerir uma recomposição das forças políticas para daí advir soluções. Faltaria a essa geração, antes de tudo, vontade e propósito!
É nesse contexto que precisamos enquadrar o problema da “terceira via”. Afinal, o problema da terceira via está intimamente ligado ao do voluntarismo e, consequentemente, à cisão entre teoria e praxis.
As candidaturas de Eduardo Leite e Ciro Gomes, por exemplo, são marcadas pelo voluntarismo. Dentre outras características, ambas se bastam na pessoalização da proposta de campanha (como se não fosse determinante saber que o PSDB gaúcho ainda deve compor com seus pares paulistas, por exemplo, ou que Ciro Gomes caiu de paraquedas no PDT), partem da proposta de construção de uma campanha a contar de uma espécie de conciliação entre polos políticos hoje existentes (como se essa conciliação não tenha sido possível antes por uma falta de [boa] vontade dos evolvidos), enfim, estão fundadas num profundo desconhecimento das razões estruturais que levaram à vitória de um projeto fascista como o de Bolsonaro. Afinal, não foi a vontade consciente do agente político, mas um inconsciente fascista-fascizante, sob o qual sucumbimos todos, quer queiramos, quer não, ainda que tenhamos feito campanha contrária ao atual ocupante da Casa de Vidro.
Contudo, o voluntarismo com o qual devemos realmente ter cuidado é aquele que se constrói em nós, aquele do qual nós podemos ser responsáveis. Uma espécie de voluntarismo grandioso na teoria que se desdobra em mero wishful thinking, no melhor dos casos, quando o possível se atualiza e podemos olhar os eventos pelo retrovisor.
Se nada surge do nada e o nada, nada produz, é preciso enquadrar o projeto dessa terceira via, é preciso entender o papel dos possíveis na política, ou, ainda melhor, o papel da imagem do possível (e que esse possível propriamente é). É preciso entender que a manifestação da imagem, o seu momento de maior sucesso, atinge o clímax justamente no ato de sua dissipação. Parafraseando Deleuze, é preciso esgotar os possíveis. Contra a clarividência, contra o avant-gardisme analítico, é preciso apresar o intolerável de nossa situação.