Bemdito

Violações à autonomia feminina em debate no STF

Como o julgamento de ações sobre a Lei de Planejamento familiar no STF traz à tona discussões sobre autonomia e preconceito na esterilização
POR Geórgia Oliveira

Durante essa semana, entre as notícias de Olimpíadas, de uma agressão não esclarecida a uma deputada federal e de um vídeo de assédio a uma criança por um pastor, pode ter passado despercebida a notícia de que ainda este ano serão julgadas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) que questionam dispositivos da Lei de Planejamento Familiar

As ADIs 5911 e 5097 – ajuizadas, respectivamente, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) em 2018 e pela Associação Nacional de Defensores Públicos (Anadep) em 2014 – visam a contestar a necessidade de concordância do cônjuge para que seja possível a realização de cirurgia de esterilização cirúrgica em homens e mulheres, além de questionar a excessiva restrição imposta por requisitos como a exigência de ser maior de vinte e cinco anos de idade ou ter pelo menos dois filhos vivos.

As ações, que devem ser julgadas em novembro deste ano, passaram à relatoria do ministro Kássio Nunes Marques após a aposentadoria de Celso de Mello. Não apenas a diferença notória de estilo entre os dois ministros – pois Celso de Mello era defensor de causas progressistas nas pautas de “costumes”, enquanto Nunes Marques, a exemplo do patrono que o indicou, é bastante conservador –, mas também a possibilidade de nomeação de um ministro “terrivelmente evangélico” tensionam e criam expectativas para os debates e a decisão que será tomada pelos ministros.

Pode parecer lógico e até natural que sejam impostas limitações e restrições a procedimentos que, como a laqueadura e a vasectomia, têm efeitos permanentes. Afinal, nada mais esperado que a decisão de não querer ter (mais) filhos, principalmente no caso de mulheres, seja a exceção, não a regra. No entanto, o acesso à esterilização, em específico, aos métodos contraceptivos e à orientação quanto aos direitos reprodutivos, no geral, fazem parte de um rol de Direitos Humanos que dizem respeito, especificamente, à autonomia da vontade que cada pessoa deve ter e que constituem obstáculos principalmente às mulheres.

A falta de acesso à informação e a pouca oferta desse tipo de procedimento pelo SUS levam a combinações “por fora” entre médicos e pacientes e a situações traumatizantes passadas por mulheres que não desejam mais ter filhos (ou nunca desejaram) e precisam enfrentar consultas e avaliações psicológicas que não respeitam a decisão das requerentes. Em um país que já não assegura a interrupção legal da gravidez e no qual as pautas de “costumes” relativas à sexualidade e reprodução constituem a linha de frente do bolsonarismo, manter critérios excessivamente restritivos para aquelas e aqueles que desejam a esterilização pode ser mais uma medida de controle e violação da autonomia.

Esterilização em massa no Brasil

Se, por um lado, é essencial atualizar as regras que determinam o acesso à laqueadura e à vasectomia 25 anos após a entrada em vigor da Lei do Planejamento Familiar, é preciso também revisitar os motivos que levaram à existência dessas restrições. Em 1993, foi publicado o relatório final da CPI mista destinada a examinar a incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil, presidida pela então Deputada Federal Benedita da Silva e cujas conclusões resultaram, em grande medida, na Lei do Planejamento Familiar.

Após estudo aprofundado de diversos documentos e oitiva de vários especialistas, as conclusões da CPI foram bastante contundentes: não só não havia política de saúde da mulher estabelecida pelo governo federal, mas também havia ampla interferência empresarial e até mesmo internacional em mecanismos de controle demográfico no Brasil, o que levava à prática clandestina de esterilizações que atingiam principalmente mulheres negras e pobres. O relatório concluiu que, no ano de 1986, quase 15,8% das mulheres brasileiras em idade reprodutiva estavam esterilizadas, muitas contra a sua vontade, o que caracterizava esterilização em massa.

A aplicação de forma arbitrária da laqueadura como método contraceptivo, muitas vezes sem o conhecimento da mulher afetada e sem respeito à suas escolhas de vida, bem como a desigualdade na utilização desse procedimento, estão fundadas na concepção preconceituosa, racista e eugenista de que existem pessoas que não devem ou não merecem ter filhos, bem como de que os filhos que elas tiverem são indesejados. Afetando notadamente a população negra e de pessoas com deficiência, a esterilização passa de medida de respeito à autonomia e ao planejamento familiar e reprodutivo individual à esfera da compulsoriedade, tornando-se grave violação de direitos humanos.

O caso de Janaína Aparecida Querino, que em 2018 foi esterilizada de forma compulsória a partir de determinação judicial e requerimento do Ministério Público, lembra de forma dolorosa como essa é uma problemática que não permaneceu nas páginas do relatório da CPI da Esterilização e que ideias eugenistas estão muito mais perto – inclusive perto de cargos de poder – do que nós idealizamos. 

Embora a necessidade de revisão dos critérios para acesso à laqueadura e vasectomia seja necessária, a pauta da esterilização não deve ser sequestrada por uma visão simplista, liberal, branca, antinatalista e sem deficiência, que não leva em conta que afirmar o direito de escolher não ter filhos implica necessariamente afirmar também os direitos de pessoas que optam por ter filhos, e não excluí-las da pauta e das reivindicações.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.