Esmola, drogas e lógica tutelar
“Qual de nós conheceu seu irmão? Qual de nós olhou dentro do coração de seu pai? Qual de nós não ficou aprisionado para sempre? Qual de nós não é, para sempre, estranho e solitário? Relembrando, sem falas, buscamos o idioma esquecido, o fim do caminho perdido para o paraíso… Uma pedra, uma folha, uma porta escondida. Onde? Quando? Ó, perdido…”
(Thomas Wolfe/tradução livre)
Você já deve ter escutado, ou mesmo falado, que não daria dinheiro para uma pessoa em situação de rua que o abordou pedindo, porque ela usaria para comprar drogas. Há ainda a variante um pouco mais discursivamente elaborada deste argumento, a de dizer que dinheiro você não dá, mas comida você pode oferecer. Porque a fome parece comover mais que a fissura. Há muitas camadas políticas nessa cena cotidianamente revivida no país, camadas que dizem de forma mais ampla sobre nosso imaginário a respeito de drogas, pobreza e condição de sujeito de uma pessoa vivendo em situação de rua. Gostaria de discutir algumas delas neste texto.
Em primeiro lugar, há grande chance de que a pessoa que nega dinheiro para supostamente não alimentar um vício seja a mesma que mantém um estoque abastecido, em uma casa de classe média, de cerveja, vinho caro ou barato, maços de cigarro, remédios prescritos por psiquiatras e outras variantes de drogas consideradas socialmente aceitáveis. Nossa sociedade, como já afirmei em artigo para esta coluna, não é abstêmia.
A questão em jogo é que esses hábitos de consumo de drogas estão alicerçados no uso de substâncias mais prestigiosas do que, por exemplo, cachaça e crack – drogas mais baratas e, portanto, mais acessíveis para pessoas em situação de rua. Na maioria dos casos, tanto quem pede esmola quanto quem nega não está “limpo”, para usar o léxico dos Alcoólicos e Narcóticos Anônimos. O que separa a primeira pessoa da segunda é o lugar social que ambas ocupam em se tratando de classe e cor, porque pessoas em situação de rua são majoritariamente negras no Brasil.
Além disso, há um tipo de presunção muito arraigada na mentalidade das classes médias e altas do país por trás da aspiração de exigir filtro a respeito do que a pessoa a quem você dá dinheiro fará com este dinheiro. Trata-se do que a Antropologia chamou de exercício do poder tutelar, longamente discutido em seus resultados por pesquisadores como João Pacheco de Oliveira e Antônio Carlos de Souza Lima. Ambos os professores pesquisaram os efeitos do poder tutelar em relação às vidas dos povos indígenas no país e constataram que a tutela tem como face oculta a violência, o massacre e a guerra contra populações subalternizadas.
A mesma mentalidade tutelar, presente na formação nacional desde a colonização, rege nossa linguagem quando nos habilitamos a decidir o que é melhor para a vida de alguém cuja realidade não conhecemos, cujas dificuldades não experimentamos, porque acreditamos estar em lugar mais lúcido, racional e elevado do ponto de vista moral. No fundo, ao nos colocarmos em posição autorizada para incidir sobre a gestão dos poucos recursos de alguém em situação de rua, reduzimos o status de sua humanidade e elevamos o nosso, exercendo controle e disciplinarização de outro corpo por meio do dinheiro. É a nossa ânsia colonial que se manifesta nesse caso.
Há também quem argumente se recusar a colaborar para que uma pessoa destrua a si mesma com um vício. A questão que parece ausente nesse tipo de raciocínio é a de que a destruição destas vidas não se dá por conta do consumo de drogas – do contrário, as classes médias e altas, que também consomem, estariam definhando por adicção.
Tal destruição é um projeto político, de caráter estrutural, cujas raízes estão na ausência do Estado para amparar pessoas em situação de rua, na falta de políticas públicas que possam garantir sua dignidade, nos efeitos duráveis do racismo no bloqueio da ascensão social de pessoas negras no Brasil e nas profundas fraturas que marcam a relação de classes no país. O abuso de substâncias é apenas sintoma do tipo de sofrimento que as desigualdades que nos dividem podem provocar.
Gostaria que o leitor fizesse comigo um rápido exercício mental. Da tela do celular ou do computador de onde me lê, tente transportar seu corpo para uma sarjeta. Pense em como seria viver exposto a um imenso e imprevisível contingente de violências. Em como seria viver sentindo fome. Viver sem ter uma superfície adequada para dormir. Em como seria não ter uma família e sua rede de apoio ser, com sorte, formada por pessoas passando por tantas dificuldades quanto você. Pense em como seria enfrentar uma absoluta instabilidade a respeito de seu futuro. Peço que responda com sinceridade: diante de um cenário assim, você não iria urrar por qualquer remédio ou veneno que o ajudasse a suportar? Porque eu iria.
Se pode argumentar que dar esmola é assistencialismo. De minha parte considero que, tendo possibilidade de fazê-lo, não é mais do que obrigação. Isto não significa dizer que deixei de ter esperança revolucionária, que parei de desejar que esta sociedade sofra uma transformação radical que resulte em não haver mais pessoas vivendo na rua, enquanto outras vivem em mansões. Significa apenas admitir que, enquanto a revolução não acontece, há gente sofrendo aqui, sofrendo agora.
É o tipo de entendimento que levou o Padre Júlio Lancelotti, um homem idoso e religioso, a carregar uma marreta para baixo do viaduto de São Paulo e quebrar as pedras de concreto colocadas pela Prefeitura, que impediam a população na rua de dormir no espaço, em mais um gesto de higienização social dos centros urbanos.
Creio impossível acreditar que haja bondade ou compaixão em deliberadamente negar dinheiro a quem precisa dele para atravessar mais um dia, seja comendo, seja ficando chapado. Vivemos em um país predominantemente cristão, crédulo de um messias que viveu na pobreza, que sobreviveu à custa de esmolas. Este mesmo país aprendeu, muitas vezes na escola, a oração de São Francisco, que roga para que possamos consolar mais do que ser consolados, que é dando que se recebe. Esta parte da ética cristã, da qual me lembro mesmo sendo agnóstica, às vezes parece ficar pelo caminho de nossa socialização.
Penso que é urgente que paremos de tentar justificar moralmente nossa indiferença com a miséria, apenas para aliviar nosso sono. Não há dilema. Enquanto houver gente vivendo na rua, não podemos estar em paz com nossa consciência coletiva. Precisamos dormir e acordar intranquilos.