Bemdito

Se você acha que tá ruim, é pior

Os limites entre as questões de ordem pessoal e a atuação do Estado
POR Simone Mayara

Na última semana, uma apuração feita pela Folha de São Paulo trouxe à tona a exigência que alguns planos de saúde estavam fazendo de que o marido autorizasse o procedimento de inserção do dispositivo intrauterino (DIU). A necessidade do termo de consentimento para inserção do contraceptivo foi apurada pela reportagem investigativa e rendeu uma bela e ruidosa manchete. No decorrer da matéria, descobrimos que há leis sobre o tema, e outras questões foram tratadas em torno da grande intromissão na liberdade pessoal e mesmo na rotina dos casais algo como essa previsão traz.

Importante explicar: o tal consentimento não é exigido por nenhuma lei. A reportagem investigativa trouxe à tona a prática em três cooperativas que atuavam em nomes de planos de saúde. Como justificativa, as empresas de saúde fizeram referência à autorização dos parceiros por meio da Lei 9.263, de 1996, que trata do planejamento familiar. O texto da legislação exige a autorização do marido ou da esposa em caso de laqueadura tubária e vasectomia, estes métodos contraceptivos definitivos.

A matéria foi seguida por várias outras, inclusive com a participação de advogados, sociólogos e outros humanistas falando do absurdo da intromissão da lei em matéria tão pessoal e , sobretudo, do tratamento da mulher na lei brasileira. Antes de parar e ler todas as matérias, tinha visto a manchete incansavelmente repetida, e várias vezes associada, à história do Conto da Aia, livro que virou série e recomendo muitíssimo.

Mas aí parei para ler as várias reportagens, contribuições de especialistas e até mesmo a lei que fala de planejamento familiar e cheguei a conclusões que são comuns nos dias atuais: metade das pessoas que está falando disso com revolta não sentou para ler nem metade da reportagem e os argumentos revoltados contra a intromissão do Estado – e nem foi o Estado quem fez- na vida íntima da pessoa vêm de quem nos outros 364 dias do ano pede a tal intromissão.

A manchete fez o seu trabalho: chamar a atenção e gerar cliques. E, de fato, o assunto e o trabalho de apuração feitos são interessantíssimos. O que veio em seguida foi curiosíssimo. As pessoas xingando muito no Twitter  sobre uma suposta exigência do Estado não entenderam que o pedido era um direcionamento feito pela empresa, logo, o Estado nada tem com isso. Mas o texto da lei de planejamento familiar traz a exigência do Estado para que o casal converse sobre o que quer fazer e quando fazer. Nesse caso, ter filhos.

A partir da crença de que a lei reflete o bem comum, e a partir da paixão estadista de que sempre falo aqui, achei curiosíssimo pensar que o objetivo da lei é garantir que um dos cônjuges não faça um procedimento permanente ou de difícil reversão – no caso da vasectomia- sem conversão com o outro. Alguém em Brasília escreveu um texto de lei, outros 200 e muitos votaram e, diante disso, a capacidade de conversa e de resolução de problemas entre um casal em qualquer lugar do Brasil passou a ser tutelada e direcionada.

Revoltante, correto? E vai bem mais além das acusações de sexismo que lotaram as redes sociais, diz respeito à intromissão do Leviatã no mais íntimo de nossas vidas. Agora, revolta direcionada ao problema correto, lembro aos que bradam: a crença de que o Estado deve agir em tudo e no melhor pela população escandaliza quando não condiz com a vontade geral, mas segue a lógica: cada pedido de proteção representa a doação de parte da sua liberdade. Não concordar com os termos não desfaz isso. Sempre. Lembre-se disso na próxima vez que pedir para o Estado se meter nas relações pessoais.

Simone Mayara

Analista política, é especialista em Direito Internacional e Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política. Atualmente é sócia na consultoria de diplomacia corporativa Think Brasil.