Bemdito

O milagre de “Lucky star”

A exploração estética do drama humano no clássico de Frank Borzage
POR Cauby Monteiro
Cena do filme "Lucky star" (1929), dirigido por Frank Borzage (Foto: Reprodução)

Lucky star (1929) é um filme de proposta simples. Conta a história de um amor que, como flor que cresce do concreto, amadurece no coração dos seus personagens a partir do convívio entre eles em um ambiente e contexto social extremamente adverso, tornando-se imprescindível para transpor as fatalidades que a vida submete a esse homem e a essa mulher, que nada podem frente à sordidez do destino.

De um lado, um homem que é confinado a uma cadeira de rodas pela guerra. Do outro, uma menina que cresceu como bicho e que ganha a humanidade que lhe é de direito por meio da compaixão de um aleijado.

Se da compaixão à paixão é preciso só um passo, para o diretor Frank Borzage é necessário que o divino interceda, sendo sempre convocado pelo amor, único poder capaz de iluminar uma estrada tomada pela escuridão. Das lições que o expressionismo ensinou ao cinema americano, a luta entre a luz — que dá vida às imagens, e portanto ao cinema — e as trevas — que roubam o espaço da luz na tela e que corrompem o coração dos homens, mas que também valorizam sua presença e tornam a vitória humana ainda mais admirável, essa lição de uma dialética quase natural ao cinema — talvez seja a mais importante de todas.

Com essa tradição em mente, Lucky star me parece um filme que nasce de um exercício deveras consciente de Borzage em trabalhar com uma proposta de cinema baseada naquilo que podemos chamar de construção total. Ou seja, neste filme, Borzage parece ter um controle absoluto das formas empregadas por ele com o intuito de substantivar suas ideias.

Os planos de Borzage que contém essas imagens de graça e salvação foram todos feitos no espaço controlado de um estúdio, onde o diretor trabalha como trabalharam pintores antes dele, compondo afrescos que perfeitamente retratam o drama humano de seus personagens.

São os caminhos que Borzage estabelece e que em bifurcações ele oferece aos seus personagens. Por um caminho, a perdição. Por outro, a salvação. Céu e Inferno coexistindo na mesma imagem. Mas também nem tudo é oferecido aos protagonistas. Existem sinais no breu, como uma carta ingênua na guerra. Aprendemos de novo que são os pequenos gestos que contam, que é do trabalho e da espera que nasce o milagre. Se retirarmos a imundície que cobre a pele seremos invariavelmente mais belos.

Em vários momentos, os espaços em que os personagens se encontram assemelham-se a esses globos de neve que vemos em filmes americanos. Como o globo de neve que tomba das mãos de Charles Foster Kane tornando-se, posteriormente, uma reminiscência da sua infância e dos aromas e luzes da casa onde foi criado e onde viveu tempos mais felizes.

Os flocos de sonho que habilmente Borzage coloca um a um no seu enquadramento nos transportam para outro estado de espírito, nos tornando espectadores privilegiados dessa canção entre dois humanos e nos preparando para aquilo que parece ser seu principal propósito: plantar um mundo em que a desgraça anunciada dê lugar ao milagre inesperado, em que as dificuldades passageiras terrenas sejam substituídas pelo amor eterno místico.

Cauby Monteiro

Cineasta e cineclubista, programa o Maldita Cineclube e dirige filmes para a produtora Asilo Febril, onde também produz o podcast sobre cinema Debate Soberano.