A garota ideal
Aos dezoito anos, cometi o maior ato de irresponsabilidade da minha adolescência: participei de um concurso de beleza.
Meu pai achou que eu pudesse vencer. Ele desconsiderou meu metro e cinquenta, disse que o clube escolheria a menina mais bonita, não uma escada, que minhas chances eram reais e que eu poderia dirigir o carro premiado vez ou outra.
Vivíamos na pindaíba e o nosso carro, o quase-a-pé, já dava sinais de irritação. Ganhar o Garota Ideal seria o modo mais fácil de conseguir outro um ponto zero, bastava não tropeçar e ser simétrica. Estava no papo, disse papai. Imagine se na cabeça de um homem nascido na década de quarenta, uma menina de dezoito anos poderia conquistar um carro sem que fosse por meio da beleza, do marido ou do pai. Só me restava ter a virtude do belo, só que até nisso o coitado do papai falhou.
Minha irmã, no auge do bom senso e dos dezesseis anos, logo impôs seu limite e alertou que não ia participar do concurso: papai, não me inscreva também, o espelho do nosso banheiro é enorme. Ela tentou me aconselhar, no entanto, eu era ruim de subtexto. Prossegui firme rumo à derrocada.
Tínhamos voltado a morar em Fortaleza depois de anos de vida circense, guardávamos a lona quando as coisas deixavam de ser divertidas. Meu pai queria refazer laços dos tempos em que ainda tinha algum prestígio em sua cidade natal (já que dinheiro mesmo nunca teve). Frequentar o clube mais elitista da cidade era o começo. A inadimplência como sócio nunca o abalou, me inscreveu orgulhoso no tal do concurso que reuniria as filhas dos seus velhos conhecidos e de quebra ainda ganharia um carro.
Chegamos ao primeiro ensaio pontualmente, papai e minha irmã quiseram me acompanhar. Adotei postura de pugilista. Entrei no ringue mascando chiclete. Até que minhas rivais começaram a surgir: meninas brancas e sem tintura de farmácia no cabelo. A garota ideal sairia de uma forma de bolo inglês.
Minha tentativa de ser loira (e padronizada) sempre foi frustrada pela textura indígena do meu cabelo. Fibra grossa não se deixa penetrar à toa. O tom alaranjado da minha longa cabeleira era o atestado da minha origem Urubu-Caiapó.
Minha irmã tocou meu ombro e sorriu. Ela estava aliviada como uma criança que faz xixi depois de horas de viagem de carro. Acho que teve piedade também, só que o alívio era manchete de jornal.
Quando as candidatas se puseram de pé para que fossem passadas as instruções, comecei a andar para trás como quem está prestes a ser assaltada, mas, imaturamente, escolhi a dignidade. Lógico que tinham outras adolescentes abaixo da média e iludidas por suas famílias, mas elas não estavam ali pelo carro, ser ideal valia mais.
Ao final do único reconhecimento de área, a cerimonialista disse que eu não ousasse mascar vulgarmente aquele chiclete no dia do desfile e pediu que cada candidata escolhesse a música de sua apresentação. Não consegui pensar em nada, mas papai avisou que já tinha escolhido a minha trilha: tanto faz, pai.
No dia do desfile, todas as meninas estavam com o mesmo vestido de veludo preto para que não houvesse concorrência desleal. Como se isso fosse balizar a beleza de todas, quase a meritocracia do belo.
O clube estava lotado. Todos gritavam, parecia uma rinha de galo. Foi a primeira vez que tomei uma dose de uísque. Eu seria a última a entrar e teria que esperar nove músicas até meu abate. Os aplausos foram ardendo tal qual o uísque na minha garganta.
Até que meu nome foi falado errado no alto falante. Avistei papai, já bêbado. Ele estava de costas para o palco, conversava calorosamente com um senhor pomposo, tentava refazer o que nunca tinha sido feito.
Então, a cerimonialista ordenou que eu subisse alguns degraus, fizesse uma pausa dramática e desfilasse devagar. Comecei a escutar a voz de Gloria Gaynor, ela sim sabia usar um veludo. A primeira frase da música escolhida por papai era I am what I am. Eu sou o que sou.
Um holofote rodopiou e me encontrou. Cresci trinta centímetros e fiz uma bola imensa com meu chiclete sem gosto.