A tentação da vida alheia
Um padre envolve-se sexualmente com um cristão frequentador de sua paróquia. Esse é o ponto de partida para alimentar fios de tweets, memes, áudios, novelas, confabulações, investigações gratuitas, tempo gasto e dedicado por milhares de ávidos, ávidas, avides, avidxs pela teia sociolibidinosa inesperada, com fios encharcados pelo erótico e pela subversão. Prato cheio. Concorrência pesada até para a novela Pantanal.
Nada de novo. Há uns meses a esposa de um personal trainer se envolveu (sexualmente também) com uma pessoa em situação de rua, dentro de um carro. No plot twist, chega o marido da mulher e agride o, posteriormente, apelidado “Mendigo de Planaltina” ou “Mendigo Influencer”. Tudo gravado em vídeo. No caso (com perdão do trocadilho) do Padre e do Fiel (ok, nem tão fiel assim) as fontes primárias, facilitadas pela esposa traída, foram prints e gravações de áudio.
Confusões de ordem pessoalíssima devassadas pelo tribunal público digital, a crítica especializada na vida alheia. Não sei ao certo se quando Jürgen Habermas desenvolvia o conceito de “esfera pública”, ele pensava também nesta perspectiva. Para o filósofo, há um condicionante que coloca o tema próprio ao debate público: o caso ser de interesse geral. Por isso minha dúvida. A vida amorosa do sacerdote de uma igreja do Rio Grande do Norte, a condição de saúde mental da esposa de um personal trainer de Brasília seriam seminais para manutenção de nossas vidas e da democracia já desgastada?
Anthony Giddens e Philip W. Sutton retomam o conceito habermasiano para acessar a origem da esfera pública como surgida “nos salões e cafés dos séculos XVII e XVIII em Londres e Paris, bem como em outras cidades europeias, onde as pessoas se encontravam para discutir os assuntos do dia. Embora apenas uma pequena parcela da população estivesse envolvida nessa cultura, essas pessoas foram vitais para o desenvolvimento inicial da democracia porque os salões introduziram a ideia de solução de problemas políticos por meio do debate público.”.
A considerar as consequências políticas e os efeitos práticos na ordem democrática, tais atos microssociais, para não os classificar de domésticos, como o de Brasília e do Rio Grande do Norte não teriam lá tanto impacto na vida de 212,6 milhões de brasileiros.
Em uma escala macro, convenhamos que em ambos os casos não há relevância para debate tão grandioso nas redes sociais. Mas ocorre justamente um deslocamento forçado dos casos da esfera privadíssima para o debate público recheado de doses de entretenimento e, às vezes, falta de sensibilidade. Tal deslocamento nos ocupa a mente com o mais puro néctar da distração efêmera, talvez justamente para gastar o restinho de energia que cabeças fatigadas ainda guardam.
Não se trata de um fenômeno típico da internet. Basta lembrarmos dos testes de paternidade e dos casos de família, tendo como arenas para debate a televisão aberta. O problema é que nas redes sociais engajam e abrem para interação e criatividade. E convenhamos: é mais tentador, além de assistir, participar destes siribolos dos outros, sem nos preocupar com as consequências em nós mesmos.