Bemdito

A euforia da ignorância: sobre o dia em que a pandemia acabou

Um exercício de imaginação sobre o sonho da vida pós-pandemia
POR Paula Brandão

Um exercício de imaginação sobre o sonho da vida pós-pandemia

Paula Brandão
paulafbam@gmail.com

Acordei com o farfalhar das ruas. Sem entender o ruído que já não me era íntimo, corri para varanda. Bem que minha mãe dizia, quando eu mencionava a sua sorte em morar numa casa no Piauí, daquelas com um quintal enorme, na época da pandemia: “Minha filha, corre o risco de o mundo acabar e a gente não saber daqui.” Verdade, eu soube antes de você que o mundo não acabou, mamãe! E corri pra te contar: “Me espere aí no próximo final de semana!”

Os vizinhos começaram a surgir nas janelinhas, com tantas cores que minha vista precisou recuar e se preparar para a profusão de tonalidades! As crianças já batiam aqui na porta, com a bola na mão, para meu filho descer. Eu não sabia o que fazer primeiro! Peguei um vestidão vermelho e bem solto, coloquei um bocado de anel, um par de brincos e meu novo tom de batom. Do elevador, voltei para pegar a máscara. Que esquecimento… Não, não preciso mais dela. Aperto o botão pra descer e passo álcool em gel. Me dou conta que não sei mais nem sair de casa!

Também não sei dizer as palavras corretas e nem para quem ligar. Lembrei-me da filhinha do colega do meu marido que deixou “papa e mamã” perplexos ao pronunciar a sua primeira palavra da vida: “álcool.” Ela tá numa enrascada pior que a minha, vai ter que aprender um léxico complexo de palavras empoeiradas de outros tempos. Do carro, lembrei-me de cancelar a live que eu tinha hoje! Gente, que alegria cancelar uma live! Ninguém aguenta mais tanta autoridade em qualquer coisa, os profetas da pandemia explicando o nosso cansaço, e muito menos, conseguimos nos alegrar à distância com o som dos barzinhos. Ultimamente, tudo isso me dava nos nervos!

Intuitivamente, fui dirigindo para lá, onde meu coração fez morada por tanto tempo! Quando saltei na praça, os barzinhos já estavam cheios. Eu vi toda aquela moçada que nem sei o nome, mas sei que é gente minha! Parei no primeiro grupo e os abracei! Lembro bem que, com a voz ainda embargada, eu disse: “Que bom encontrá-los ainda aqui nesse mundo! Vou precisar de vocês todos!” Lá no canto, embaixo da mangueira mais frondosa, elas estavam com um largo sorriso, erguendo seus copos! Nosso encontro tantas vezes adiado se fez real! As minhas amigas estavam maravilhosas, cada uma com certa marca no olhar, no rosto, uma diferença sutil. Mas me reconheci nelas e nos abraçamos longamente… Aqueles encontros dos corpos que os corações tentam se segurar, cada um batendo mais forte de um lado. Amigas, como eu aguardei por vocês!

No primeiro brinde, não esquecemos de derramar um pouco de cerveja no chão para aqueles que partiram, cansados de esperar, mas seguimos animadas, tomadas pelo cheiro do espetinho de linguiça assado na esquina e que já vinha para o nosso prato! Acho que ouvi meu nome, pode ser engano, escutei muito tempo apenas alcunhas “mamãe, bebê, professora…” Mas era mesmo meu nome! Vinha da galera que chegava cantando e dançando, cheia de molejo e alegria no gogó: “esse ano eu não morro!”

Estávamos todas ali, pregando já os adesivos no peito e tramando a mais definitiva rasteira que íamos dar nesses tempos perversos! Armadas até os dentes de amor e os sentimentos mais verdadeiros para enfrentar qualquer coisa. O povo do mal não ousaria cruzar nosso caminho ali e sair incólume! Passamos muito tempo sem poder vociferar contra os socos diários que recebíamos. Era um golpe por dia, mas engrossamos a nossa couraça e agora nada, absolutamente nada, nos causava medo! O rapaz já trazia a caixa de som. E as três meninas do Ceará que são uma em representação preparavam as mais doces e certeiras palavras para organizar a nossa pauta! Estávamos prontas para a mais bonita revolução humanitária e social de todos os tempos!

Toda realidade é ficção, então meu texto é também! Experimentei uma sensação que Carlo Ginzburg, em O fio e os rastros, chamaria de “euforia da ignorância”, uma sensação de não saber nada e de estar a ponto de começar a apreender alguma coisa.” Esse esforço é como sonhei que seria meu primeiro encontro com a vida, alvissareira de enunciar um novo tempo, de tão cansados que já estão meus olhos de esmiuçar a já tão esgarçada elasticidade do cotidiano. Agora, nosso encontro fica marcado! Quando tudo isso findar, estarei debaixo daquela árvore, te esperando com uma cerveja bem gelada e vamos em busca da mais profunda liberdade, com fome de luta e de estabelecer novas bases sociais para o mundo que sobrevivemos.

Paula Brandão é professora da UECE, doutora em sociologia e pesquisadora na área de gênero, gerações e sexualidades. Está no Instagram.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).