Bemdito

Mães em luto e em luta

A batalha por memória, verdade e justiça das mães que perderam seus filhos e filhas para a violência
POR Geórgia Oliveira
Foto: Reprodução/Facebook

A batalha por memória, verdade e justiça das mães que perderam seus filhos e filhas para a violência

Geórgia Oliveira Araújo
georgia.araujo17@gmail.com

Para o texto dessa semana, havia planejado escrever sobre a relação que tenho com a minha mãe, permitindo-me um momento de egoísmo e indulgência em uma coluna que fala sempre sobre temas tão difíceis para falar um pouco da nossa experiência juntas nessa pandemia. Mas, infelizmente, no Brasil de quem pesquisa sobre violência não existem mais dias comuns, em que podemos falar descompromissadamente sobre alguém que que amamos. Nosso país se consolidou como um cemitério de tragédias e essa última semana deixou essa realidade ainda mais evidente.

Escrevendo esse texto às vésperas do dia das mães, com 420 mil mortos pela incompetência na gestão da pandemia e com casos diários de violência, é impossível não lembrar das mães que choram pelas suas perdas e dos filhos e filhas que perderam as mães. Na primeira semana de maio, assistimos a um massacre perpetrado dentro de uma creche, na cidade de Saudades, em Santa Catarina. O assassino, armado com facão, vitimou duas educadoras e três bebês de menos de 2 anos de idade. Uma das mães disse que nunca vai escutar a filha chamá-la de mãe, porque a criança ainda não havia aprendido a falar. Também assistimos incrédulos à polícia do Rio de Janeiro realizar uma chacina em que foram mortas 28 pessoas e justificar uma ação que, do início ao fim, foi eivada de ilegalidade e brutalidade. As mães da comunidade do Jacarezinho, além da perda dos seus filhos, estão sofrendo com o descaso e as humilhações típicas do tratamento dado pelo Estado e seus agentes aos familiares daqueles que são vítimas da violência perpetrada pela polícia. Um policial também foi morto na operação, porque a nossa polícia é a que mais mata e também a que mais morre.

No país em que o presidente fala com veemência que quer armar a população, lembro da mãe de Isabele, morta em 2020 aos 14 anos por uma amiga da mesma idade, que tinha total acesso a armas de fogo e praticava tiro esportivo mesmo sendo menor de idade, o que foi autorizado por decretos do governo Bolsonaro em janeiro do mesmo ano. Ainda que os envolvidos no crime tenham sido julgados e condenados, a mãe de Isabele permanece lutando contra as medidas de facilitação do acesso, da compra, da posse e do porte de armas de fogo aprovadas pelo governo federal.

Impossível não lembrar nesse dia das mães de Mirtes, mãe de Miguel, criança de 5 anos morta em junho de 2020 por Sarí Corte Real, que deixou com que o menino entrasse desacompanhado no elevador do prédio e apertou o botão para que ele fosse parar em outro andar. Mirtes hoje cursa Direito e luta por justiça para seu filho. As mães e as famílias dos meninos Lucas Mateus, Alexandre e Fernando Henrique, que desapareceram em Belford Roxo em 27 de dezembro de 2020 ainda não têm respostas sobre onde estão seus filhos e continuam pressionando as autoridades diariamente para que a investigação avance. Ian e Bruno Barros, mortos após uma tentativa de furto em um supermercado em Salvador, também deixaram um vazio nesse dia das mães para seus familiares, que ainda tentam entender como eles foram executados por conta de alguns pacotes de carne.

Há de se pensar ainda nas mães que perdem as filhas vítimas de feminicídio e nos filhos que têm suas mães assassinadas em contexto de violência de gênero. Ainda não existem políticas públicas que amparem as famílias que precisam lidar com a dor da perda e com o sentimento de revolta e impotência causados pelos feminicídios, ou para apoiar as crianças que se tornam órfãs a partir do assassinato das mães e que, principalmente em contexto de violência doméstica, passam por um abalo imenso em sua estrutura familiar.

No Ceará, as mães de vítimas do Estado permanecem em busca de justiça e reparação pela morte dos seus filhos e lutam para que mortes decorrentes de intervenção policial deixem de acontecer. Na última sexta-feira, dia 7, o jovem Everton, de 24 anos, foi atingido por uma bala no pescoço após uma abordagem policial no bairro Jangurussu. Nesse dia das mães, os familiares de Mizael, garoto de 13 anos morto pela polícia em Chorozinho, ainda se perguntam por que ele foi atingido com tiros de fuzil e por que têm tanta dificuldade de conseguir informações sobre o andamento do caso.

Os familiares das vítimas da chacina do Curió, que matou 11 pessoas em 2015, ainda não viram os policiais responsáveis pelos assassinatos serem julgados, e criaram um movimento de luta e amparo para as mães que tiveram seus filhos assassinados por agentes estatais, ganhando na justiça o direito de receberem apoio psicológico do Estado. O Ceará têm visto números crescentes de mortes por intervenção policial e, mesmo em meio à pandemia, a quantidade de pessoas vitimadas por essa violência apenas cresce e se destaca por vitimar quase sempre pessoas negras.

As famílias das adolescentes Keron Ravache e Pietra Valentina vivenciam as recentes perdas ainda com um buraco no peito. Em um dos países que mais mata pessoas LGBTQIA+, o preconceito, a discriminação e a violência de gênero ceifam vidas cada vez mais jovens e revelam também a face institucional das violações, que se traduzem na falta de uma perspectiva de gênero nas investigações de mortes de pessoas trans. Mesmo com tanta violência, as Mães pela Diversidade seguem na luta pelos direitos de seus filhos, filhas e filhes e ordenam: “tire seu preconceito do caminho, queremos passar com nosso amor!”.

Muitas dessas mães transformaram seu luto em luta. Batalham diariamente por memória, verdade, justiça para todos os filhos e filhas e pela responsabilização daqueles que vitimaram seus entes queridos. Batalham também pela liberdade de filhos e filhas presos de forma injusta ou ilegal. Lutam pelo fim do racismo, da misoginia, do desprezo com as periferias, da política de segurança pública violenta que mata crianças e jovens todos os dias no Brasil. Lutam por oportunidades, educação e emprego para que a juventude não seja vitimada pela violência ou pelo Estado. Empenham-se no apoio mútuo e na solidariedade porque, como disse Edna Carla, do Movimento de Mães Vítimas Por Violência Policial do Estado do Ceará, “lutando em grupo, fica um pouco mais fácil de levar a dor”.

Quando penso no privilégio enorme que é ter minha mãe viva e vacinada ao meu lado nesse dia de luto para tantas pessoas, penso também que a coisa mais preciosa que ela fez por mim foi sonhar um futuro no qual eu pudesse ser feliz, como fazem tantas mães. No entanto, vivemos no país em que esses sonhos são interrompidos bruscamente. A homenagem nesse segundo domingo de maio é à força de todas as mães que lutam por memória, verdade e justiça, mas também é o desejo de que todas elas possam viver uma vida livre de violência e ver o futuro que sonharam para si e para seus filhos realizado.

Geórgia Oliveira Araújo é colaboradora do Bemdito e pesquisadora na área de violência de gênero. Está no Instagram.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.