A escritora que eu gostaria de ser
“Nunca permita que ninguém diga que
palavras mágicas não existem”
(Siri Hustvedt – O mundo em chamas)
Estas são as palavras de uma aficionada. Não tenho a intenção de parecer neutra, nem imparcial. Considero Siri Hustvedt um dos maiores gênios literários em atividade e um dos cérebros mais brilhantes em funcionamento hoje. Não tirei a ideia de uma cartola, como um coelho mágico, nem estou me baseando em simples gosto pessoal. A escritora venceu o Prêmio Princesa das Astúrias das Letras, e seu romance mais exigente, O mundo em chamas, foi indicado ao Man Booker Prize. Hustvedt foi traduzida para mais de 30 idiomas e, até onde me consta, seis de suas obras estão publicadas no Brasil. Ainda assim, em terras brasileiras, ela segue espantosamente pouco lida e comentada.
Embora minha jornada de formação leitora tenha começado pisando principalmente nos clássicos da literatura russa, francesa e inglesa, conforme fui atingindo certa maioridade intelectual, passei também a acompanhar com atenção – e não raro deslumbramento – os feitos da literatura contemporânea. Zadie Smith, David Foster Wallace, Philip Roth, Jeffrey Eugenides, Karl Ove Knausgård, Lucia Berlin, Elizabeth Strout… São alguns dos nomes que me ocorrem de imediato como captadores de minha admiração. Mas, com Hustvedt, algo muito diferente acontece. Ela me inspira e me espanta na mesma proporção. Leio seus livros com a sensação quase erótica de que agora, sim, o meu cérebro está sendo desafiado de verdade. E as coisas que li antes parecem menores.
Hustvedt é predominantemente uma romancista. Embora ela possua uma produção rigorosa e consistente de ensaios, seu terreno de expansão preferencial é a ficção. No entanto, além de uma contadora de histórias excepcional, a escritora se instruiu, como ela própria chegou a admitir, quase como uma viciada, em psicanálise, neurociências, história da arte clássica e contemporânea, e filosofia moderna.
O resultado se faz sentir em suas obras. Em meio aos enredos, Hustvedt insere meditações bastante meticulosas que mais parecem ensaios filosóficos. Todas as suas histórias apresentam uma inquietação epistemológica fundamental: a percepção em torno da arte. O que realmente define o valor e a durabilidade de uma obra, quando retiramos os vernizes do prestígio, do mercado, dos jogos de poder, das hegemonias estéticas de cada tempo? É uma pergunta que grandes teóricos, como Umberto Eco, tentaram responder, mas a escritora, embora flerte com o limiar, está fazendo literatura, não teoria. Ela apenas oferece o confronto. Apresenta as contradições e ambivalências que o envolvem. Fica a cargo do leitor decidir a própria posição.
Talvez o que tanto me atraia na produção de Hustvedt seja o reconhecimento de sua personalidade minuciosa e obcecada. Há temas que a entusiasmam e ela não o esconde, pelo contrário: tenta se resolver com eles por meio da escrita. Deste modo, produz uma espécie de híbrido inclassificável, abandonando os compartimentos positivistas tão desgastados que separam de forma rígida a arte, a ciência, a filosofia e a vida pessoal.
Um dia, a autora foi acometida por um terrível tremor apenas do pescoço para baixo, durante um discurso sobre o falecimento de seu pai. Enquanto seus membros e tórax chacoalhavam de forma espantosa, ela continuou consciente, falando de forma articulada. O episódio, que viria a se repetir outras vezes, fez com que se lançasse em uma profunda investigação, desde a clínica das histerias até os estudos de neurologia avançada. O percurso deu origem ao livro A mulher trêmula ou Uma história dos meus nervos.
Em se tratando da ficção, meu texto favorito é certamente O que eu amava, uma trama envolvendo um grupo de artistas e professores universitários que reflete sobre processo criativo, luto, estruturas neuróticas, drama familiar, sexualidade e amor. Uma das mais belas passagens ocorre quando o personagem Bill se dá conta do amor inescapável que sente por Violet, a modelo que posava para as suas pinturas.
Bill admite para seu melhor amigo: “Começou antes […] na época em que ela estava posando pra mim. Não aconteceu nada entre a gente. Quer dizer, nós não tivemos um caso nem nada, mas o sentimento já existia. Tive que me controlar muito. Lembro-me de ter a sensação de que, se encostasse um dedo que fosse nela, eu estaria perdido. E aí, quando ela foi embora, eu não conseguia parar de pensar nela. Eu achava que aquilo ia passar, que era só uma atração sexual que desapareceria, se algum dia eu voltasse a vê-la. Quando ela me ligou um mês atrás, uma parte de mim torcia para que eu olhasse para ela e dissesse a mim mesmo: ‘Você passou anos obcecado por essa mulher? Você estava maluco?’. Mas no instante em que ela entrou pela porta… Eu fiquei de quatro assim que olhei para ela. O corpo dela… Ela é tão receptiva, Leo. Eu nunca tinha experimentado nada parecido. Nem de longe.”
No entanto, para o leitor ainda não iniciado, recomendaria O verão sem homens. É um livro curto: conta a história da poeta Mia, que, após um colapso que a conduz à internação, muda-se para a cidade onde nasceu e passa a conviver com a sua jovem vizinha, vítima de um marido violento, a própria mãe e suas amigas já idosas e um grupo de adolescentes para quem começa a dar aulas de poesia.
Investigando a feminilidade em diferentes facetas, o talento de Hustvedt pode ser experimentado em versão condensada. Mas seu grande monumento literário é sem dúvidas O mundo em chamas, uma narrativa sobre a artista fictícia Harriet Burden, que, sofrendo do luto da viuvez, decide provar a misoginia do ambiente artístico, apresentando suas obras sob máscaras de homens contratados, para mostrar que apenas uma assinatura masculina já é em si um facilitador do sucesso. É evidente que o empreendimento sai do controle.
Narrado após a morte de Harriet, o romance é um labirinto fragmentário e muito experimental de diários da protagonista, entrevistas, comentários de críticos de arte e historiadores, um mosaico que o leitor é convidado a tentar montar. É um trabalho deslumbrante.
Por um destes encontros felizes do destino, Siri Hustvedt casou-se com Paul Auster, outro escritor excepcional. Infelizmente, o mundo consegue ser cruel mesmo com os amores mais extraordinários. Nos poucos e esparsos comentários que vejo sobre a escritora no Brasil, ela é quase sempre referida de imediato como “a mulher de Paul Auster”. Ele, ao contrário, nunca foi referido como “o marido de Siri Hustvedt”. Um entrevistador chegou mesmo a inquiri-la se havia sido o marido que a ensinara com tanta qualidade psicanálise e neurociências.
Minha imaginação tenta ser mais generosa do que estes episódios revoltantes. Gosto de imaginar a conversa dessas pessoas geniais. Penso em como deve ser um cotidiano feito da coexistência de dois artistas tão acima da média. Nos dias em que desejo ter esperança nos amores felizes, como diz Wislawa Szymborska, penso em mim mesma sentada em silêncio, a pessoa mais privilegiada do mundo, apenas ouvindo os dois pensando juntos em voz alta.
Há quem acuse Hustvedt de arrogância e exibicionismo, essas características imperdoáveis em uma mulher, porque ela não esconde a própria erudição. Lembro-me então das palavras dela mesma sobre a sua Harriet imaginária: “Ela sabia demais, ela lia demais, era alta demais, detestava quase tudo que era escrito a respeito da arte e corrigia os erros das pessoas. Harry disse que, antes, ela não corrigia as pessoas. Durante anos, só ficou lá parada, em silêncio, ouvindo todo mundo bagunçar as referências e datas e nomes de artistas, mas àquela altura ela não aguentava mais”.
Foram muitas as vezes em que, como Harriet, silenciei diante de erros grosseiros, de fazerem minha cognição estremecer em protesto. Faço isto até hoje, uma lição de modéstia e discrição que a feminilidade inculcou muito bem na minha subjetividade. Simpatizo muito com o fato de Hustvedt não ficar fingindo que não sabe, quando sabe.
Acho tentador, neste texto, refletir mais longamente sobre a influência de Lacan, Freud, Derrida, Kierkegaard, Merleau-Ponty, Wittgenstein nos escritos de Hustvedt, porque, assim como ela, eu também me apaixonei por esses autores. Mas acho que é mais acertado e fundamental advertir que não é preciso ter bagagem prévia sobre nenhuma das tradições teóricas que a inspiram para aproveitar a leitura de seus livros. As referências podem com facilidade serem encaradas pelo leitor como acessório estilístico, sem prejuízo para o acompanhamento do texto.
O mais importante a dizer é que, com Hustvedt, eu aprendo a pensar melhor, a ler melhor e a escrever melhor. Acho sempre um pouco milagroso ver uma mente intensa, talentosa, inventiva e incendiária em funcionamento. Sinto que lendo-a, me torno uma pesquisadora mais entusiasmada, mais curiosa, mais ousada. E, talvez a questão primordial, a mais devotada: Siri Hustvedt é exatamente o tipo de escritora que eu gostaria de ser.