A feiura, o crime e nós, os bonitinhos do Instagram
Dia desses passava na televisão uma rápida entrevista com um catador de reciclados que vivia nas ruas, pele muito queimada resultante das incontáveis horas exposta nesse nosso sol para cada um, dentes apodrecidos pela vida dura e quiçá pela falta de sorrisos. Escutei com atenção o que ele falava. Contava da vida dura, das horas caminhando e das noites ao relento. Por fim, ele disse quantos anos contava. Tínhamos a mesma idade. Nesse momento, corri para o espelho mais próximo e tirei a prova. Eu, da mesma idade, não tinha todas aquelas marcas. Eram as marcas da vida muito dura e miserável. Eram marcas que, nem sei dizer, nos deixam feios de vida? Seria esse um termo apropriado?
Passei o resto do dia lembrando daquele homem e tudo que se apresentava à minha frente imediatamente passou a se relacionar a ele. A feiura daquela miséria dominou meus pensamentos e lembrei de outro momento, há alguns anos, quando em uma visita ao sistema prisional encontrei com um rapaz que se disse de minha idade, mas na verdade era um homem corroído por tantos anos na cadeia.
A miséria é feia. A fome é feia. E fica mais feia ainda quando o que deveria ser justiça abomina e condena o feio ao invés de transformar a feiura em beleza. As favelas são feias. Não falo da estética do porcelanato, falo da estética da fome. Da ausência do estado, a não ser como polícia. O desemprego é feio. A morte é feia.
Não estou falando de feiura ou beleza a partir de um padrão estético instagramável, mas sim da feiura construída e dita como tal.
Sim, existe uma feiura construída. Ela se chama miséria.
A miséria e seu lado visto por todos nós não são naturais ao ser humano, me recuso a pensar que sejam. Ela é construída a partir das relações sociais, políticas e econômicas, que segregam, exploram e controlam forças de trabalho. Segregam por costumes e segregam por leis.
E essa miséria está aumentando. Segundo dados levantados por reportagem da Folha de S.Paulo, mais de metade dos brasileiros passa por algum tipo de insegurança alimentar. Mais de 24 milhões de pessoas em nosso país não sabem o que e nem se irão comer amanhã. Amanhã. Muitas dessas pessoas estarão buscando comida nos restos de carcaças de peixes e ossos de animais. Dados da FGV Social apontam que a renda dos brasileiros está caindo, principalmente na metade mais pobre da população. Com tudo isso a extrema pobreza já chega a mais de vinte e sete milhões de pessoas no Brasil. Como reflexo, o total de favelas dobrou na última década.
Por outro lado, em 2021, o Brasil em plena pandemia e crise econômica viu sua lista de bilionários crescer. É um país excludente e desigual. Sempre foi. Agora parece ser mais. Mais feio.
Mas não é feio para quem busca a comida. É feio para nós todos, inclusive, eu, você e nossos políticos. É feio para todos, menos para quem não tem o que comer. Porém, serão eles que irão pagar, por não ter o que comer.
E pagam, todos os dias. Semana passada veio a público o caso da mulher, mãe de cinco filhos, presa desde 29 de setembro pelo furto de comida e refrigerante. O valor total dos produtos foi apurado em R$ 21,69. Isso, vinte e um reais e sessenta e nove centavos.
Apesar da miséria se abater sobre ela, a feiura da situação se estende a todos nós. A feiura da condição de miséria dela é decorrência de nossas escolhas, em alguma monta. Ela, com sua fome, pode parecer fora de diversos padrões, até porque quem tem fome não tem tempo para moda. Mas nós, de barriga cheia e Instagram sempre atualizado, é que somos os feios. Mesmo arrumadinhos, com maquiagem, roupinhas organizadinhas e filtros de aplicativos, nada apaga a feiura da desigualdade. E de nossa culpa social.
Mas o ponto aqui não se esgota no feio, vai além. O problema na origem é a criação de toda essa fealdade. O próprio sistema econômico cria os padrões, exclui e pune. Dirão: “Bonito é meritocracia, mas roubar para comer é feio”. Não digo que esse ultimo é bonito, mas digo que aquele primeiro, a meritocracia, é feia. Construída para justificar privilégios.
Daí, se constrói o que é e o que não é aceitável aos nossos olhos limpinhos e sem fome. E, depois de tudo isso, são esses, feios, que serão julgados, além de tudo, pela sua feiura, pela sua miséria. Na verdade, já estão condenados.
No período do Império Romano, o imperador Valério declarou, no que seria conhecido como Édito de Valério: “Na dúvida entre dois suspeitos, condena-se o mais feio.”
Parece que continuamos condenando as pessoas da mesma forma.