Bemdito

A vagina da Barbie, o ponto H e mais um padrão feminino

Como a ditadura da beleza avança sobre mais um espaço do corpo feminino: a vagina
POR Paula Brandão

Numa aula sobre sexualidade que ministrei há anos, em determinada pós-graduação, as estudantes foram convidadas a promover o debate sobre um tema. A turma era composta apenas por mulheres, e fizeram a seguinte dinâmica: passaram uma caixa de madeira fechada, que todas podiam manusear, mas não dizer o que havia dentro. Chegando a mim, a suspeita se confirmou: era um pênis de borracha. Por que a sexualidade só pode ser proferida pelo discurso fálico? Quando as mulheres estarão preparadas para encarar de frente as próprias vaginas? 

Chegou esse momento, finalmente! As vaginas agora estreiam no centro do cenário de paredes de vidro da sexualidade! Enfim, as mulheres vão entender mais sobre seus corpos e suas florzinhas, pepecas, pererecas, e todos os termos que ofuscam mais, e revelam menos. Mentira! Estou a brincar! Temos longas distâncias a serem percorridas até essa ideia vingar. A vagina agora é um projeto a serviço da beleza e do prazer dos outros.

Julgadas até após suas mortes pelo quanto pesam, agora o controle se esconde no meio das pernas. Toda a independência conquistada nunca parece suficiente para ser convertida em capital cultural e estético: no mote do autocuidado, da liberdade, querem prendê-la agora por onde? Por baixo! Não só os corpos vistos a olhos nus, mas as partes íntimas das mulheres precisam ter um padrão de qualidade! A lógica é sempre tirar o foco da liberdade e desviá-lo para o que não importa. 

Foi-se o tempo em que as mulheres que habitavam o imaginário masculino, desde Gabriela, Tieta, e toda a pornochanchada brasileira era aquela natural. Hoje quando um homem a chama pra sair, ela pensa logo se está com a depilação em dia. Sim! Os homens que gostavam de mulheres do jeito que elas vieram ao mundo se extinguiram! Atualmente, eles querem (será que querem mesmo?) a trepada asséptica, e uma vagina adulta que imita a infantil: sem pelos e rosada, igual a de uma criança ou da boneca Barbie como dizem, e precisa ter as propriedades da água potável: insípida, inodora e incolor (digo, branquinha). 

A pesquisadora Marcelle Silva, em sua tese primorosa, intitulada Ame seu corpo, inclusive sua vagina, diz que a vagina mostrada como ideal é aquela sem pelos, simétrica e sem excessos. Contudo, as vaginas não são iguais. Para que se tornem assim, seria preciso que fizessem diversas intervenções para modelá-las e torná-las aceitáveis aos novos padrões. Sua pesquisa revelou que há um número cada vez maior de mulheres recorrendo a procedimentos como clareamento feito a laser na região, depilações permanentes e cirurgias íntimas, como a Labioplastia que seria para dar simetria aos pequenos e grandes lábios. 

Em sua análise crítica revela as armadilhas dessa área. O que para uns seria uma tirania, para outros, como certos profissionais da Medicina, a questão é apontada como se fosse uma espécie de empoderamento feminino, um modo de a mulher moderna ser mostrada como liberada sexualmente à medida que sua autoestima muda ao embelezar a vagina. 

Não bastasse toda a tortura que é se submeter a tais cirurgias, a julgar pelo massacre que é a depilação no local, agora o foco é o ponto H. Ao contrário do G, que é natural – e todas temos conhecimento ou deveríamos ter –  o ponto H é produzido pela injeção de acido hialurônico na vagina, aumentando o atrito do pênis ao penetrá-la. Também chamada cinicamente de “presentinho para o seu parceiro”, faz lembrar toda a cultura médica machista que já deu o “ponto do marido” na sua mãe, quando você nasceu.

A despeito de uma interpretação reiterada da sexualidade pelo ponto de vista cisheteropatriarcal e de um derrapada na cultura da pedofilia que celebra vaginas de mulheres similares a de crianças, lembro que a nossa história foi de muito silenciamento e violências. Nossas ancestrais foram criadas para obedecerem aos homens, sejam seus pais, irmãos mais velhos, maridos, médicos, padres ou pastores. Só recentemente, depois de séculos de domínio masculino, conseguimos entrar nas mesmas Universidades, ter chances mais aproximadas de disputar espaços com eles e de sairmos dessa manipulação.

Um dia desses eu assisti uma entrevista da Kylie Jenner, a que tem mais seguidores do clã Kardashian, em que afirmava ter dado seu primeiro beijo em um rapaz que lhe disse ter gostado, contudo, seus lábios eram muito finos. Basta dizer que mediante esse sentimento de vergonha dela, o mundo desembestou a botar preenchimento labial, seguindo-a, e é difícil até encontrar quem nunca o fez. Sei que o apelo é forte, prezada amiga, mas procure o autoconhecimento para evitar que caia nas “imagens de controle” que querem te enquadrar. 

Finalizo lembrando que esses mesmos homens que redigem essas exigências, não se incomodam nem um pouco com a aparência, cor ou odor de seus pênis, o que revela muito do que chamamos de supremacia masculina. E também, com uma resposta analisada por Marcelle Silva, dada por uma mulher a uma matéria, em 2017, da Folha de São Paulo, que falava do tabu da vagina ideal: “(Se) é difícil achar um homem que goste de uma vagina com cor de vagina, cheiro de vagina, pelo de vagina, gosto de vagina e de todas as coisas que a vagina têm, então me parece que os homens é que têm um tabu.” Se liga!

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).