Bemdito

Acordei mãe de um adolescente!

Os desafios de se descobrir mãe de um sujeito em plena puberdade
POR Paula Brandão

Desde que fui mãe senti que a responsabilidade e o cuidado pelo qual abracei o sentimento da maternidade dormia e amanhecia de um modo diferente. A primeira vez que vi a profundidade dos olhos pretos do meu filho, mergulhei em mar misterioso, e um impacto me fez calar enquanto as águas molhavam o meu corpo. 

Ainda pequeno, eu ensinei-lhe tudo o que precisava para se sentir seguro e corajoso a dar os passos iniciais e, quando estava duvidosa, sua risada desarmava meus medos. Foi assim que puxei a cadeira, na salinha improvisada ao lado de sua primeira classe, e li livros inteiros enquanto esperava que precisasse de mim, até que ele não necessitou mais e ficou por conta própria. 

Na infância tecemos muitos fios em nossa relação que me colocaram como confidente do primeiro amor, dos receios matinais na nova escolinha. Aninhei-o em meu colo para ouvir suas aventuras e queixas dos pequenos que implicavam com ele, das quais eu sempre era a mais zangada! Tinha aprendido a ser mãe e exercer essa artesania com maestria, e nosso amor era cada dia maior, cercado por abraços e afagos inesperados.

Um dia ele amanheceu com 11 anos. Em uma década eu não tinha me preparado para as mudanças que viriam. Em algumas horas eu procurava reatar os fios que pareciam se desfazer rapidamente, e sobre os quais eu me debrucei tanto tempo para construí-los. Foram necessárias muitas horas para tecer essa colcha afetiva e eu agora a via emaranhada e desconexa.

A pré-adolescência é tão densa que ocupa cada canto da nossa casa. Ela se revela pelo som das portas acordadas com batidas fortes, pela surdez diante de minhas falas recorrentes e pela presença de palavras imperativas e hostis. Confusa em como reconduzir as coisas mais elementares do dia a dia antes pactuadas, comecei a abordar as mães na busca de cumplicidade na angústia e dúvida. São as sisters que estão ao meu lado nessa encarnação, descendentes de tantas outras mulheres diversas que talvez tenham lhes ensinado alguma sabedoria para essa nossa travessia. Sem exceção, encontrei nelas tantas ou mais inseguranças que as minhas.

Percebi, ao falar, que precisávamos apenas ser ouvidas, que essa escuta é lugar seguro diferente daquele que os pais oferecem. Os homens demoram a perceber as mudanças dos filhos ou relativizam, porque não era com eles que eu recordava estar nas salinhas de espera quando eram crianças. Muitas vezes são chamados quando o quadro já está dado, como uma suposta voz firme que resolverá o confronto à beira do abismo.

Ainda assim, é alguém para dividir o olhar sobre as novas situações. Se antes eu era solidária com as mães solo, pela dificuldade em criar sozinhas uma criança, sou mil vezes mais empática a elas ao imaginar como é criar sozinha um adolescente! Mas, se fortalecermos essa nossa rede de acolhimentos e afetos, fica mais fácil para nós.

 Foi assim que descobrimos que todos os adolescentes estavam passando por processos próprios de autodescoberta, de formação de suas identidades que buscavam o olhar de aceitação do grupo e que nada disso era sobre nós, mas sobre eles próprios. Concordamos que os fios não foram desfeitos, mas que os adolescentes criaram uma nova malha para que a coberta ficasse maior e abrigasse seu novo tamanho. E entendemos que, se não estivéssemos lá no começo, os elos não teriam sido iniciados. 

Essas sisters que encontrei nas calçadas, bares e deck do prédio foram fundamentais para a virada de chave. Apresentaram-me o filme Red – crescer é uma fera, no qual uma doce menina obediente chega aos 13 anos e começa a questionar o que antes era um acordo tácito. Cresce nela um sentimento incontrolável, materializado num urso vermelho que incorpora, quando se sente com raiva e contrariada.

A mãe sofre muito até lembrar da sua própria adolescência. E, na reconciliação, a filha lhe diz: “Mãe, eu estou tentando descobrir quem eu sou, mas tenho medo que isso me afaste de você! Nada permanece igual para sempre!”. No mar revolto das sensibilidades maternas, cada uma é mãe ao seu modo. É chegada a hora de aliviar as costas, dar espaço e sentar com o sentimento de espera.

Os adolescentes são extraordinariamente caóticos porque têm aberto infinitamente seu campo de possibilidades. Seus sonhos são pontes para um presente que lutam em diferenciar dos nossos. A simbologia de cortar o cordão umbilical é a sabedoria que a natureza nos ensinou desde a primeira vez em que um filho respirou fora de nós, sem a nossa ajuda, sozinho.

E daí em diante, preparamos o caminho para essa nova separação que de modo algum é definitiva. Apenas é dado um afastamento necessário para que possam se encontrar consigo mesmos.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).