Bemdito

Conservadorismo jurídico e tributação

Nos tribunais, postura conservadora é acobertada pela linguagem jurídica contra a própria Constituição
POR Thiago Álvares Feital
Trial of Pierrot (Jehan Georges Vibert)

Tão logo a Constituição lhes deixa uma lacuna para expressar seus pontos de vista partidários, os juízes entram em cena e tentam fazê-los passar por regras jurídicas.” É assim que Thomas Piketty alerta, em Capital e Ideologia, contra o caráter conservador do Judiciário em matéria econômica e social. 

A afirmação está embasada na leitura que o autor faz da história americana, alemã e francesa. Nesses países, por mais de uma vez, as cortes constitucionais declararam inválidas leis que pretendiam alterar o status quo. O que torna esses casos interessantes é o fato de que neles a técnica jurídica foi usada para justificar posições políticas questionáveis e, não raro, incompatíveis com a própria Constituição que aqueles tribunais têm a missão de defender. 

O exemplo mais traumático é o caso Plessy v. Ferguson de 1896, no qual a Suprema Corte dos Estados Unidos validou a segregação racial. O precedente instaurou a odiosa doutrina jurídica conhecida pelo bordão “separados, mas iguais” — de acordo com a qual a segregação dos negros não violava a Décima-quarta emenda que garantia direitos civis iguais a todos — e só foi superado em 1954, cinquenta e oito anos depois, quando o tribunal julgou Brown v. Board of Education.

Em matéria tributária, destaca-se o caso Pollock v. Farmers’ Loan & Trust Co. de 1895, no qual a Suprema Corte estadunidense declarou inconstitucional o imposto de renda criado um ano antes. Segundo o tribunal, a Constituição proibia a criação de impostos diretos que não fossem repartidos entre os estados. A decisão, extremamente impopular, foi superada pelo Congresso com a aprovação da Décima-sexta emenda, autorizando expressamente esta tributação. 

Na Alemanha, Piketty recorda o caso Kirchhoff de 1995. Nele, o Tribunal Constitucional Federal estabeleceu que, após o pagamento de todos os tributos que incidem sobre a sua renda, o contribuinte deve ficar com pelo menos 50% da renda original. Do contrário, a tributação violaria o direito à propriedade.

O acórdão — que ainda hoje é citado em manuais de Direito tributário brasileiro como exemplo de aplicação do princípio do não confisco — causou escândalo e foi superado pelo tribunal em 1999. Em 2006, o tribunal confirmou a decisão de 1999, afirmando que “cabe apenas ao legislador estabelecer se o tributo será cobrado de forma proporcional ou progressiva” e que não compete ao Judiciário estabelecer um limite pré-determinado para a carga tributária.

O conservadorismo do Direito no Brasil

O Brasil também tem seus precedentes conservadores em matéria tributária. Em 2002, onze anos após a distribuição do Recurso Extraordinário nº 134.509/AM, quando chamado a decidir se os estados poderiam cobrar IPVA de proprietários de aeronaves e embarcações, o Supremo Tribunal Federal afirmou que não, pois a tributação seria inconstitucional. O tribunal se apoiou na premissa  de que o IPVA é uma continuação da antiga Taxa Rodoviária Federal. Como esta taxa incidia apenas sobre veículos terrestres, o IPVA também deveria se restringir a estes. 

Essa premissa é histórica e hermeneuticamente equivocada. Historicamente, uma vez que não há evidências inequívocas nos arquivos da Constituinte de que a Assembleia Constituinte desejou que o IPVA recebesse o mesmo tratamento de uma taxa federal. Hermeneuticamente, pois não se deve interpretar a Constituição em vigor à luz da vontade de seus redatores, mesmo que fosse possível identificar essa suposta vontade coletiva.

IPTU e a alíquota progressiva

O IPTU, outro imposto sobre a propriedade, nos dá mais um exemplo. Entendendo que imóveis mais caros devem ser tributados com alíquotas mais altas (seguindo o princípio constitucional da progressividade previsto no artigo 145, §1º da Constituição), vários municípios instituíram alíquotas progressivas para este imposto. Esta progressividade foi questionada em centenas de ações judiciais promovidas pelos contribuintes. 

Em 2000, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional n.º 29, para autorizar expressamente essa cobrança e sepultar as discussões judiciais. Após a promulgação, o STF reafirmou a posição conservadora, por meio de súmula, e afirmou que a tributação progressiva passou a ser permitida pela Constituição apenas após a emenda. A decisão foi embasada em uma leitura da Constituição a partir de conceitos teóricos — a classificação dos impostos em reais ou pessoais —, que não são encontrados na literalidade do texto constitucional. 

Nos dois casos, encontramos uma postura conservadora acobertada pela técnica jurídica. É a linguagem jurídica sendo usada contra a própria Constituição. Arrojada e inovadora, a Constituição de 1988 se tornou o alvo de um direito tributário teorizado por conservadores. 

Nesse cenário, que pudemos ver recentemente nas discussões sobre tributação de dividendos, contra a qual os tributaristas se manifestaram prontamente, a Constituição parece sempre na iminência de não conseguir justificar-se. Aqueles que defendem a aplicabilidade de suas normas mais básicas devem estar sempre a postos para legitimar aquilo que os outros chamam de excessos. A Constituição deixa de ser a norma superior do Direito brasileiro para se tornar ré deste próprio direito.

Thiago Álvares Feital

É advogado, professor, doutorando e mestre em direito pela UFMG. Pesquisa tributação, desigualdade, gênero e direitos humanos.