É possível dizer que existe um partido militar?
Em 7 de julho, uma nota oficial assinada pelo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, e pelos três comandantes das Forças Armadas (FA), ganhou protagonismo no noticiário nacional. A nota foi uma reação à fala do presente na CPI da Covid, o senador Omar Aziz (PSD-AM), sobre os indícios de envolvimento de militares em irregularidades na negociação de imunizantes.
Durante os trabalhos da CPI, Aziz havia declarado: “os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia, porque fazia muito tempo, fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo”.
A resposta foi imediata. “Essa narrativa, afastada dos fatos, atinge as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de uma acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsável”, dizia a nota.
Exagerada e cheirando a ameaça, a nota inaugurou um novo capítulo dessa novela que tem se tornado a militarização da política brasileira no governo Bolsonaro. Nunca na história brasileira os militares ocuparam tantos cargos na administração federal (Poder Executivo).
Por isso, gostaria de retomar essa discussão, já iniciada em outro momento, sobre os desdobramentos da participação de militares na política brasileira. Agora, detendo-me em outro aspecto que tem me inquietado particularmente: é possível dizer que existe um partido militar?
Os partidos políticos cumprem, num regime democrático, papel fundamental de representação de interesses de segmentos dentro de uma lógica de pluralidade de interesses. Em sociedades cujos sistemas políticos são complexos, é por meio dos partidos políticos que demandas e/ou projetos políticos disputam a conquista do poder através de eleições.
De caráter associativo, os partidos políticos reúnem indivíduos que compartilham ideologias, projetos de sociedade, agendas políticas a fim de fazer o governo incorporar e atender vontades coletivas. Para tanto, necessitam de um nível de disciplina e organização interna.
Tomando como ponto de partida essa definição, alguns aspectos chamam atenção no que diz respeito à atuação política de (parte dos) militares: a) a defesa de interesses corporativos; b) a disputa por espaço na máquina pública – o que ficou bastante evidente no caso do “escândalo da Covaxin”, desnudado pela CPI da Covid – e c) o espírito de grupo associado à forte hierarquia que contribui para dar coesão às decisões tomadas pela cúpula das Forças Armadas.
O que define um Partido Militar
As cientistas políticas Ana Penido e Suzeley Kalil assim definem o Partido Militar: “O Partido Militar une as diferentes vontades individuais em um discurso coletivo partidário fortemente ideológico e, para isso, cuida da educação política dos seus quadros. Não é monolítico, ou homogêneo, mas é bastante coeso ideologicamente. O partido representa os interesses corporativos das FA, priorizando políticas públicas e a ocupação de cargos pela sua própria base, mas também participa de eleições e interpreta a Constituição segundo seus interesses, desejando massificar na sociedade seus entendimentos sobre o país. Seu núcleo duro é permanente, e não ocasional ou reflexo de regimes políticos, sendo responsável por estabelecer alianças e fazer articulações políticas que, em algum momento, aumentam seu poder. (…) A estrutura organizativa do Partido Militar repete a das FA, baseada na hierarquia e disciplina, e se aproveita de estruturas estatais para o seu funcionamento. Por isso, é um partido com alta disciplina partidária e processos decisórios simples e hierarquizados. Oficiais superiores já na reserva desfrutam de especial protagonismo por deterem maior liberdade de ação. E, diferente de qualquer outro partido político, o Partido Militar mantém relações diretas com a força das armas.
Esse modelo de organização e atuação política encontrou abrigo no governo Bolsonaro em um acordo que ofereceu vantagens para ambas as partes. Se, de um lado, essa parcela das FA, que constitui o Partido Militar, encontrou espaço para expandir sua influência e se estabelecer na máquina pública, por outro, o presidente, que não pertence a nenhum partido político, buscou não só quadros qualificados nas FA, como também as utiliza como uma espécie de blindagem ao seu governo.
No início do governo Bolsonaro, a boa avaliação da instituição FA funcionava como uma espécie de fiadora da sua atuação no Executivo Federal, como um sopro de racionalidade, moralidade e qualificação técnica dentro do governo. No entanto, após as denúncias e investigações que apontam irregularidades na atuação de militares – a exemplo da gestão de Pazuello à frente do Ministério da Saúde – na gestão da pandemia, esses personagens foram colocados no centro do palco da CPI.
Neste momento, em que o partido militar – que não é um partido formal – viu-se nas cordas, com queda na avaliação de confiança, associado a um governo mal avaliado, com membros sendo questionados ou obrigados a dar explicações, ficou nítida sua resistência a obedecer às regras do jogo democrático. A nota do dia 7 de julho nos diz muito.
Ora, a transparência é um dos fundamentos dos regimes democráticos. Se isso é tão custoso para as FA, que saiam da política e voltem para a caserna. Afinal, como diz o ditado, “se não sabe brincar, não desça para o play”.