É sempre sobre o amor
Lembro-me do primeiro menino que eu comprei. Um traficante viu a polícia vindo e “dispensou” a arma para o menino guardar. A polícia tomou a arma do menino, deixando-o com uma dívida. Agora ele devia R$ 80 e, evidentemente, não tinha como pagar.
O ano era 2009. Oitenta conto era dinheiro pra caramba e eu também não tinha. Mas pedi para uns amigos e fui lá pagar a dívida. Ao efetuar a transação o traficante me disse:
– Esse menino é seu! Ninguém mais mexe com ele.
Até hoje me pergunto por que cargas d’água eu fiz isso. Não conhecia o menino, não conhecia a família, mas a história me chegou e eu já era responsável pelo que havia escutado.
Uma jovem talentosa, linda, universitária, entra num estado de desorganização mental profunda e, isolada no quarto, espera a morte chegar. Eu não tenho nada com isso, mas a irmã me liga desesperada numa manhã de um dia da semana. Falo com cuidado na porta do quarto que não se abre. Depois de muita mediação, a porta se abre, eu entro.
Naquela bagunça interna e externa, abraço aquela mulher com todo amor que eu pudesse transmitir com um gesto. Banho tomado. Alimentada. Cabelos lindos lavados. Ela, com uma força brutal, teimou em viver, buscou ajuda especializada, concluiu o curso superior e se tornou uma artista super talentosa e reconhecida na cidade.
Quando eu estava na função de “coordenador de disciplina”, no sistema socioeducativo, fazia parte ser violento e de preferência ser grandão, musculoso.
Entrei na ala para me apresentar, e os adolescentes começaram a rir de mim. Caçoavam. Como alguém tão franzino ia “botar moral” sem ser violento (e me faltavam tamanho e músculos)? Eu respondi:
– Eu vou entrar na sua mente. Quando você pensar em falar, eu já sei o que você vai dizer. Tenho o instrumento mais forte dessa unidade que é a palavra. Eu vou comandar falando.
Ninguém riu.
Nas minhas noites de plantão, eu ia de cela em cela desejando boa noite e ensinando a escovarem os dentes direito (eu estudava Odonto na UFC durante o dia e trabalhava no sistema durante a noite), contava estórias, fazia orações, tirava dúvidas de matemática e geografia. Falava sobre Manoel de Barros e minha infância impossível no Bom Jardim. E, quando eu falava, a ala inteira silenciava. Respeito você dá. Respeito você recebe.
Conto essas coisas buscando encontrar respostas. Eu podia não me importar. Podia ter seguido meu sonho de ser um cirurgião plástico e ficar rico, mexendo no triângulo da face dos Meirelers, mas escolhi me envolver. Descer no inferno que habita essa cidade. Escolhi andar e comungar com gente que as pessoas julgam indignas de vida e sorrisos. Escolhi me importar com a dor alheia, talvez buscando lenitivo para as minhas próprias dores. Entendi que só vale viver se for sentindo, e eu sinto muito o tempo todo.
Mas foi a irmã da jovem que eu ajudei no relato acima que me deu uma dica sobre a razão de fazer o que eu faço. Ela me disse que é sempre por amor. Não importa a pergunta, a resposta é o amor. É sempre sobre o amor.