Eu já fui feliz um dia
Em meio ao caos, o alheamento no universo da ignorância e do amor tem gosto de dia feliz
Jamieson Simões
jamrsimoes@gmail.com
Há tempos, eu não parava para curtir a vida sem pressa, senti-la. Aquele negócio de viver sem a pressão da agenda, sem ter reunião com gestor público que finge que se importa, sem ter que mediar conflito que pode escalonar pra uma chacina. Um tempo pra ficar de boas: eu precisava disso. Sem notícias graves e urgentes. Há tempos, eu não ficava sem saber. Não saber é um tipo de paraíso.
Peguei um freela em São Paulo. Um intensivão de compartilhamento de experiências numa cidade do interior, mas a grana dava pra bancar as passagens e a estadia na grande babilônia. Eu tinha prometido pra ela que ali seria um momento só nosso. Não atenderia demandas de Fortaleza e nem atenderia ligações. Tinha algumas folgas pra tirar no trabalho oficial, pedi licença e voamos. Confesso que seria um desafio pra mim, parar totalmente por 10 dias. Mas eu a amava e queria isso. Era-me exigido e eu quis fazer.
Ela ficou acomodada no apartamento de uma amiga e eu desci pro interior. Trabalhei ininterruptamente durante 3 dias. Entreguei o combinado. Dinheiro no bolso e retorno na mesma pisada. Fiquei orgulhoso do trabalho que fiz. Deixei como produto as histórias de vidas desperdiçadas, o que será feito é de responsabilidade deles. Voltei feliz e só queria caminhar invisível com ela naquela cidade onde eu era só mais um desconhecido.
O reencontro foi bom. Saudade ficou apertada no abraço. Rolou aquele beijo. Porra! Aquele beijo! O perfume que ela usava deixava um cheiro na pele que eu queria morder. Me aguçava os instintos. Devorei-a muitas vezes e sorria besta quando olhava pra ela. O sol de agosto é o meu preferido e ela ficava mais linda sob essa luz. Quanto mais eu a tinha, mais eu queria. Parecíamos namorados, amantes recentes, com o mundo todo à nossa frente. E eu já pensava em aceitar uma proposta de trabalho e começar uma nova vida ali. A tentação da Babilônia.
Decidimos sair e eu não queria pegar táxi. Ela insistiu. Cedi. Dei sinal pra 4 táxis e nenhum parou (eu sei por que e, se você é negro ou negra, também sabe). Puto, já com ódio no coração, falei:
– Eu vou me esconder ali mais distante e você dá sinal pro táxi.
Dito e feito. O sacana do motorista para e abre a porta. Antes que ele desistisse, entro no maldito carro e fomos ao cinema. Indignado, fico calado. Cara e mão fechada. Decidindo gastar meu réu primário naquela merda de viagem. Ainda na escada rolante, um homem branco me encara. Conheço aquele olhar e devolvo. O desgraçado começa a subir a escada como se viesse numa caçada. Eu não sou caça pra ninguém. Solto a mão dela e vou em direção, disposto a fazer daquele racista um paciente hospitalar. Ele desiste. Eu abro um sorriso diante da sorte dele. Não era seu dia.
O filme foi ruim. Deixamos a sala de mãos dadas. No meu coração, habitavam harmoniosamente o ódio e o amor. Almoçamos. Tomamos cerveja. Nos beijamos. Porra! Aquele beijo! Trancados no quarto. Frio por fora. Quente por dentro. Na boca, um gosto de dia feliz.
Jamieson Simões é um corpo-negro no mundo com toda potência que isso implica. Está no Instagram.