Figurar o medo
Catarina tem medo de cachorro. Aos oito anos, fecha os olhos e tapa os ouvidos com as mãos toda vez que se depara com um cachorro pela rua. Evita pisar a calçada das casas de onde já ouviu qualquer latido, ainda que abafado pelos muros de concreto e a cortina metálica dos portões. Ao avistar um filhote passeando na praça, mesmo atado ao dono pela coleira, ela se enrijece e se esconde por detrás de minhas pernas, como se estivesse a poucos metros de uma fera.
Quando neném, não teve bons momentos com o cachorro do apartamento vizinho, uma criatura pequena cujo frequente estado de irritação era inversamente proporcional a seu tamanho. Apesar de protegida, no alto do meu colo, Catarina sempre se espantava com o peludo, nos encontros fortuitos pelas escadarias do prédio. Ele latia estridente e rosnava na direção dela. Infelizmente não houve, naquela época, outra referência de cachorro por perto, amigável e terna, que se sobrepusesse à imagem encolerizada do vizinho.
Numa dessas manhãs recentes que têm se erguido sem sol, apenas com a claridade turva barrada pelas nuvens, acordei ao avesso. Havia sonhado com Catarina. Estávamos caminhando, uma ao lado da outra, pelos jardins da praça que mais habitei na infância. Ao sentarmos num banco, percebi que ela havia crescido de repente, como se em segundos houvesse se tornado uma garota de quatorze anos. Diante do meu rosto borrado pelas lágrimas, ela indagou “mãe, por que está chorando?”, ao que respondi “quando eu lhe dizia para não crescer tão rápido, estava falando sério, filha!”.
Dias depois, narrei para ela o sonho e rimos juntas. Ela parecia não perceber que aquilo traduzia um medo meu, tão real quanto seu medo de cachorro, mas do qual nem mesmo eu me dava conta. É estranho encarar esta verdade: a de que a maternidade traz consigo muitos receios. Talvez porque parte de mim se apegou profundamente à Catarina bebê que há anos amamentei dias e noites seguidos e que hoje já não quer minha companhia na entrada da escola até a porta da sala de aula. Talvez porque, do mesmo modo desajeitado com que vim a ser mãe naqueles seus primeiros meses, o aprendizado persiste entre nós, sempre experimental, assustador e intuitivo, ao longo das diversas fases da vida.
Claro que o medo não é exatamente o de vê-la crescer, mas o de lidar, no caminho natural de seu crescimento, com situações que desconheço, que me tomam o chão e as palavras. Felizmente, esse caminho também é o do amadurecimento e o da paciência. Perceber, nomear e figurar os medos, em vez de escondê-los no escuro embaixo da cama, são formas mais saudáveis de conviver com eles e não torná-los tão monstruosos assim, poderosos a ponto de paralisar. Como diz minha querida amiga Fernanda Meireles: “Tenho medo porque estou criando coragem”.