Bemdito

La vie est belle, consumismo e hábitos na pandemia

Pelo direito de ser alvissareira e homenagear a si mesma para escapar das garras do estresse diário
POR Paula Brandão
Foto: H Heyerlein

Pelo direito de ser alvissareira e homenagear a si mesma para escapar das garras do estresse diário

Paula Brandão
paulafbam@gmail.com

Aquela mania de abrir os olhos e ligar o celular para saber o que aconteceu enquanto você dormia, esqueça! Quando durmo, os meus sonhos não passam por uma assepsia e para aqueles seres que habitam o espaço onírico, não existe álcool em gel nem máscara. A galera vive o “normal” de antes e, às vezes, até o que eu gostaria que fosse comum naquela época, antes de março de 2020, leve e vivendo por aí… Pois é, mas acordar e abrir os olhos pra saber se estou ainda nesse mundo de cá me faz puxar o celular com força da tomada, no meu quase despertar, e saber se aconteceu algo bem mágico enquanto eu estava do outro lado. Mas já tem dois dias que a primeira coisa que vejo é o símbolo da fitinha preta e uma nota de pesar. Sinto peso, pesa, pesar quando amanheço. Não faça isso, não! Olhe para o sol, respire fundo e vá viver seu dia!

Já peguei algumas manhas desses tempos. Antes eu abria os olhos e, ainda engasgada com algo indefinível, começava a colocar a mão na testa dos meus. Eles, às vezes, acordavam e me olhavam como quem olha aqueles que já perderam o juízo faz é tempo e, quando despertavam, eu aproveitava para saber se não tinham os demais sintomas da Covid. Só depois desse ritual, eu conseguia começar o dia.

Quando se pensa no fim de si ou do mundo, pouco importa se você estará de Prada ou Dolce & Gabbana quando ele chegar. Perto da dor de milhares de pessoas, suas unhas podem ficar por fazer, seus cabelos podem revelar claramente que você não está bem, – afinal, ninguém anda bem mesmo -, e nada, absolutamente nada, que você compre pelo e-commerce te trará aquele gostinho de felicidade que você sentia antes quando ia ao Shopping. Lutamos por tantas coisas, vacina, defesa do SUS, que pouco importa comprar um sapato quando você só aparece da cintura (que você já deve ter perdido nesse último ano) para cima. Que tenhamos o direito de ficar feias, descabeladas, ora bolas! Estamos exaustas. Que mentira esse sonho comprado caríssimo do sistema capitalista, que vamos nos sentir cidadãos pela via do consumo, que comprar traz a felicidade.

Será que é isso mesmo? Muito bem, Roxane Gay, em A Fome, diz ser contra os padrões de beleza, pois as pessoas não valem pela sua aparência e, boa feminista que é, assevera: “Sei que os padrões culturais são insensatos com as mulheres. Isso é o que eu sei, mas não o que sinto. São duas coisas diferentes.” Que liberdade ler essas palavras dessa grande mulher! Que coisinha difícil é essa divisão do que penso como verdade, e como me sinto realmente!

Há um ano que eu fico procurando um novo jeito de ser. Para encontrar esse caminho, comecei a pensar no que gostava antes da pandemia e lembrar de mim… Tenho saudades diárias de acordar, tomar banho, me arrumar e dirigir até o trabalho, ouvindo músicas e cantando, feliz da vida. Detesto podcast, nunquinha que perdia meu tempo pensando com os outros até a Universidade. Eu ia era dançando, sonhando, inventando. Lembrei de Fellini quando dizia que dirigir é muito perigoso. É mesmo! Corria um sério risco de chegar mais alegre ao meu destino! E agora, o que fazer sem trabalho presencial e sem trajeto de deslocamento?

Eu ainda posso tomar um gostoso banho, arrumar o meu cabelo, passar meu batom vermelho, usar minhas bijous e vestir uma bonita roupa para dar minhas aulas online, ou participar das milhares de reuniões que tenho ao logo de todo o dia. E por que não? Esses meus atos benfazejos causaram um certo mal-estar, no início. As mulheres elogiavam com certa crítica, às vezes só carinho mesmo, o fato de eu estar toda arrumadinha. Isso porque elas nem imaginavam que, invariavelmente, eu estava com o meu perfume preferido La vie est belle. Ele me faz acordar e lembrar como eu era! Tenho que ouvir do meu filho que ninguém vai me cheirar. Mas todos aqui em casa já se acostumaram! Ninguém vai sentir como estou cheirosa, que meu sapato é novo, e a minha saia é escândalo, mas esse é meu segredo íntimo (era)!

Sempre que estou assim, me lembro de mim de um jeito bem parecido com o modo como as idosas falavam, sorrindo pelos olhos, quando eu as perguntava sobre seus grandes amores e diziam: “no meu tempo…” Esse tempo era o da juventude, dos grandes amores malfadados, e de quando se recordam felizes. Meus olhos ficam desse jeitinho, quando me miro no espelho e percebo que a menina ainda dança, quer festa e cores no seu dia. Moça, lembre do seu tempo, como você era? Não existe fórmula para sobreviver nesse momento, e até pensei se eu tinha o direito de escrever sobre isso com o enlutamento que o Brasil vive, mas precisamos trilhar o dia de hoje, o que nos resta é o presente. É importante ser bem alvissareira e versejar homenagens diárias para si mesma, escapando das garras tristes do estresse diário, sem romantizar o sofrimento ou inventar um novo personagem. Vá lá, olhe para dentro de si, e pode até ser que aquela bolsa de plástico que imita uma de couro, recém-lançada pela Arezzo – a minha foi cor gloss e nem sabia que existia, deve ser coisa da pandemia, a gente doida por gloss nem que seja na bolsa – te faça bem feliz para ir ao supermercado. Depois joga álcool 70% com toda a sua força e toma um banho que lava até a alma.

Paula Brandão é professora da UECE, doutora em sociologia e pesquisadora na área de gênero, gerações e sexualidades. Está no Instagram.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).