Bemdito

Meu encontro com Galeano

A memória de um encontro desajeitado com o autor de "As veias abertas da América Latina"
POR Jáder Santana
Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A memória de um encontro desajeitado com o autor de “As veias abertas da América Latina”

Jáder Santana
jaderstn@gmail.com

A vida tem daqueles raros episódios que permanecem na memória embrulhados por sentimentos de constrangimento e orgulho. É assim que lembro do meu encontro desajeitado com Eduardo Galeano, escritor uruguaio autor de tantos livros que fizeram parte de minha formação como leitor e jornalista. 

Era algum dia de 2013 e eu vivia em um apartamento antigo que fazia esquina com o Parque Rodó, a zona verde mais agradável de Montevidéu. Dividia o apartamento de três quartos e um banheiro com um uruguaio, uma irlandesa e uma norte-americana. Havia ido embora do Brasil poucos meses antes, sozinho, sem saber muito bem o que fazer, com as economias de três anos de estágio em um jornal de Fortaleza. Finalmente, depois um curto período de agonia e dúvida em terras estrangeiras – que incluiu uma temporada de dois meses vivendo em uma pensão para aposentados -, havia encontrado uma boa casa e um bom emprego.  

Naqueles dias, dava aulas de espanhol para brasileiros e português para uruguaios em um programa de extensão. À noite, duas vezes por semana, estudava literatura latinoamericana na Universidad de la República. Uma vida cheia de compromissos, mas tranquila, já habituada ao ritmo uruguaio, lento, contemplativo e com cheiro de mate. 

Então, naquele dia de 2013, perto das seis da tarde, desci apressado de meu apartamento, atrasado para dar aula. Havia na mesma rua um mercadinho, comprei uma empanada e uma latinha de Coca-Cola e segui minha caminhada que durava não mais que vinte minutos. Quando cruzei a primeira rua, nesta esquina, vi Eduardo Galeano. Levava uma boina na cabeça, sacolas na mão, e conversava com alguém. Surpreso, interrompi o passo no meio da rua, entre uma esquina e outra, petrificado, patético com uma mochila abarrotada nas costas, uma mão cheia de livros e a outra mal abarcando uma empanada e uma latinha de refrigerante. A boca cheia, mastigando. 

Li As veias abertas da América Latina no primeiro semestre da faculdade de jornalismo, influenciado por um professor chileno que mais tarde se tornaria um bom amigo. Era a terceira graduação depois de dois cursos abandonados. Mais de uma década depois, continuo não tendo tantas certezas sobre o jornalismo, mas a paixão pela América do Sul, nascida, em grande parte, pela leitura daquele livro, continua intensa e se renova a cada dia. Neste 2021, a obra seminal de Eduardo Galeano completa meia década de vida. 

Mais que um clichê dos movimentos de esquerda, As veias abertas foi fundamental para a tomada de consciência de todo um continente sobre noções que até então, em grande medida, permaneciam circunscritas ao universo acadêmico. Colonização, imperialismo, dominação política, identidade e genocídio indígena passaram a ser discutidos em espaços informais e movimentos de base, colaborando com o fortalecimento de uma visão crítica sobre nossa relação de servidão em relação aos países de primeiro mundo. 

Banido de vários países latinoamericanos durante seus períodos de ditadura militar, o ensaio só foi publicado no Brasil em 1978, sete anos após seu lançamento. O próprio Galeano teria que se exilar na Argentina após o golpe militar ocorrido no Uruguai em julho de 1973. Para um continente que vivia seus dias mais sombrios, As veias abertas foi uma espécie de Bíblia, um livro sagrado que inspirou em iguais medidas amor, ódio e orgulho nos movimentos de resistência. Galeano fez e espalhou anti-imperialistas por todo o continente. 

À descoberta de Galeano, se seguiu neste jornalista uma ânsia de exploração de geografias. No jornal em que trabalhava em Fortaleza, juntava horas extras de expediente até que se transformassem em dias. Emendava o fim de semana e viajava para algum lugar. Acumulava férias para viagens mais longas. Foi assim que estive quase dois meses na Amazônia. Algumas boas semanas na Bolívia. Argentina, Paraguai. Chile do Sul ao Norte. E o Uruguai de Galeano, a capital, o litoral e as minúsculas cidades rurais do interior. Por suas veias abertas, me apresentou um norte evidente: viver é explorar. 

E naquele fim de tarde, em uma esquina do Parque Rodó, com a boca cheia e as mãos ocupadas, completamente assombrado, como um personagem vulgar d’Os Trapalhões, interrompi meu passo apressado a um metro de Eduardo Galeano. Não sei por quanto tempo permaneci naquela posição, no meio da rua, encarando o homem de boina, buscando inconsciente algum elemento que confirmasse que eu estava realmente diante dele. Acontece que Galeano e seu interlocutor, percebendo que alguém os observava fixamente de uma distância indiscreta, interromperam a conversa e viraram o rosto em minha direção, me encarando com uma expressão confusa de “posso ajudar?” 

Sustentei seu olhar por uma fração de segundos e, embasbacado em meu constrangimento, entalado de empanada, as mãos carregadas de qualquer coisa, respondi “perdón” e retomei minha caminhada sem olhar para trás.

Hoje, enquanto escrevo estas linhas e busco pelo Google Street View a exata esquina onde o vi naquele dia, encontro, por acaso, a poucos metros do lugar, um senhor que poderia ser Galeano. Calvo, como Galeano. Cabelos brancos na parte de trás e nas laterais da cabeça, como Galeano. A barriga um pouco maior, é verdade. Mas, parado à beira da calçada, mãos no bolso, ele observa alguma coisa que está fora do quadro, como Galeano me encarou assustado naquele dia.

Jáder Santana é jornalista e editor do Bemdito. É mestrando em Estudos da Tradução pela UFC e curador da Festa Literária do Ceará (Flac). Está no Instragam e Twitter.

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.