Minirreformas, “distritão” e o desperdício de voto
Até a primeira década dos anos 2000, a reforma política era enunciada como a salvaguarda para o funcionamento ideal das instituições políticas. O impasse da possibilidade de reforma se deu porque os parlamentares, eleitos por um sistema do qual já conhecem as regras, não queiram alterar a dinâmica do jogo. Mas mudanças acontecem.
No Brasil, a partir de 2015, consolidou-se a estratégia do que se chama “minirreformas eleitorais”. O Legislativo, a cada ano que antecede uma eleição, discute e aprova alterações. Há quem considere que é um modo de fazer “reforma fatiada”. Entretanto, considero que se trata de uma estratégia para incentivar o funcionamento institucional desejado pelos agentes políticos articuladores da mudança. E há impactos consideráveis no que diz respeito à representação política.
Em 2017, sob a liderança de Rodrigo Maia (na época, do DEM), ocorreu uma dessas minirreformas. O destaque foi a nova regra estabelecida via Emenda Constitucional 97/2017, que excluiu as coligações para o Legislativo – ou seja, para essa instância eleitoral, os partidos não podem mais se aliar e cada legenda precisa fazer o número de votos sozinha.
Os votos remanescentes da legenda auxiliam um candidato do mesmo partido a ser eleito e, como consequência, há a possibilidade de aumentar a bancada do projeto político que se alinha com a escolha do eleitor. Qual seria, então, o efeito pretendido com essa nova regra? Consolidar candidatos e possíveis representantes com afinidades de propostas políticas de governo e, ainda, diminuir a escolha personalista. O efeito observado nas eleições de 2020 foi a dificuldade de pequenos partidos, históricos, permanecerem competitivos.
Em debates recorrentes no parlamento, Eduardo Cunha (antigo PMDB), quando foi presidente da Câmara Federal em 2015, colocou em pauta o “distritão”. Foram 267 votos a favor e 210 contra. Por se tratar de emenda constitucional, não foi aprovado, pois precisaria de 308 votos. Porém, a proposta não se encerrou por aí. Retornou no governo de Michel Temer (MDB), mas não chegou a ser votado. Hoje o “distritão” ressurge como pauta na Câmara dos Deputados sob a presidência de Arthur Lira (PP).
Candidatos e partidos
A proposta de “distritão” rompe com a ideia da proporcionalidade e busca estabelecer eleições majoritárias, ou seja, que seja eleito aquele com o maior número de votos. Os defensores argumentam que os partidos serão mais seletivos quanto ao número de candidatos. Argumentam, também, que é um modo de diminuir a quantidade de legendas com mandatos. Jairo Nicolau, cientista político, destaca que o incentivo à individualização da política retira o pertencimento ao partido.
O “distritão” produziria ainda um desperdício de votos. No sistema proporcional, quando um candidato atinge a quantidade de votos necessária para assumir uma cadeira no Legislativo, os demais votos são utilizados para possibilitar que outros do mesmo partido sejam eleitos. Assim, aumenta-se a representação daquele projeto político. No “distritão”, não há distribuição de votos remanescentes pelo partido. Na simulação de Jairo Nicolau sobre as eleições de 2014, 30,6 milhões de eleitores não teriam seus votos contabilizados.
O modelo favorece, portanto, candidatos que já possuem inserção na política, ou seja, há maior personalização das campanhas. Aumenta também a chance de lideranças religiosas, de organizações civis e personalidades culturais e esportivas, em virtude de suas legitimidades produzidas pelo capital social. Nesse sentido, há o enfraquecimento dos partidos como articuladores de projetos políticos coletivos.
Assim, embora pareça atrativo associar o modelo de votação majoritário à maioria, relembro o princípio democrático sobre o significado da representação política em sistemas democráticos: a representação de interesses plurais inerentes à sociedade brasileira que, diante da competitividade eleitoral, possibilitam a alternância de poder.
Além de constituírem mudanças fragmentadas, num período que antecede a realização das eleições, as articulações em torno do fim das coligações para o Legislativo em 2017 e a nova discussão sobre o “distritão” possuem outro aspecto em comum. Ambas as pautas tiveram pouca visibilidade quando estiveram em discussão no parlamento, a despeito de constituírem mudanças significativas no sistema político e afetarem diretamente a representação política da sociedade brasileira.
Desse modo, cabe refletir sobre as intempéries produzidas pela aprovação de um projeto como o “distritão”, que enfraquece o caráter coletivo de projetos, potencializa a individualização das candidaturas e, ao personalizar, mantém agentes com acúmulo político e inviabilizam novas candidaturas com potencial de representatividade coletiva.
Nesse sentido, vão de encontro ao princípio de desenvolvimento de igualdade política para garantir inserção de sujeitos no processo democrático. Pontuo, ainda, que, ao individualizar a representação política e retirar o caráter coletivo do mandato, é colocada em xeque a responsabilidade pública na implementação de projetos políticos.
Diluir em minirreformas questões substanciais para as instituições políticas é estratégia de grupos específicos, com potencial para enfraquecer partidos e projetos que representam coletividades plurais. A experiência nos mostra que as minirreformas têm atendido a interesses mais pontuais da classe política e em contextos particulares, passando, na maior parte dos pontos, ao largo de debates e decisões que contemplam a democracia em seus princípios de representação.