Morrer apenas o necessário
O primeiro poema de Wislawa Szymborska que li na vida se chama “Vietnã”. Foi como ser esbofeteada. Atônita, eu lia e relia aquele pequeno arranjo de palavras e tentava entender como uma poeta conseguiu, em um restrito conjunto de frases, condensar com tanta intensidade o horror da guerra e o prolongamento possível das raízes de uma maternidade. Lembro-me de ter, na ocasião, recordado da colocação de Anne Carson em entrevista, quando diz que, se a prosa é uma casa, a poesia é um homem em chamas, atravessando depressa seus cômodos.
A poesia é um ofício radical em suas exigências. Muito volátil, sem escrúpulos, contém mesmo algo de criminoso. É possível escrever prosa mediana, mas é impossível escrever poesia mediana. Ou um poema funciona, ou não funciona, não há meio termo praticável. E quando não funciona, um poema parece um violino desafinado – desagradável e altamente perceptível. A poesia não é o tipo de esgrima que se recomende para os fracos.
Szymborska parecia estar agudamente consciente do tipo de preço que ser poeta cobra. Formada em literatura e sociologia na Cracóvia, a poeta, em seu discurso para o Nobel, reflete sobre o que distingue os poetas dos tiranos. Wislawa afirma que os torturadores, ditadores, fanáticos e demagogos lutando pelo poder, “sabem”. E, por saberem, não interrogam a si mesmos, gerando um conhecimento morto, contrário a tudo o que sustém a vida, uma ameaça para as sociedades. Já um poeta, se é um poeta de verdade, diz ela, deve repetir constantemente para si mesmo: “não sei”. Cada poema é uma tentativa de resposta e, a cada tentativa, o poeta se dá conta de ser uma resposta provisória. Num mundo tão espantoso, feito de nosso desamparo diante dele, os poetas têm muito o que fazer.
Em sua primeira coletânea de poemas publicada no Brasil, Szymborska aparece em uma fotografia em preto e branco, envolta na fumaça do cigarro que traga. Foi surpreendente o impacto positivo que as palavras da autora tiveram no Brasil. Desde então, o leitor brasileiro acessou mais duas antologias traduzidas do polonês, uma biografia e um livro infantil, contendo colagens da autora. Os poemas continuam dando mostras da competência de Szymborska em refletir sobre o espírito do tempo. É o exemplo de “Filhos da época”, que declara: “Querendo ou não querendo,/ teus genes têm um passado político,/ tua pele, um matiz político,/ teus olhos, um aspecto político./ O que você diz tem ressonância,/ o que silencia tem um eco/ de um jeito ou de outro político.”.
Ao mesmo tempo, temos contato com a sensibilidade lírica da autora, em poemas de grande exuberância sentimental, como “Um amor feliz”, que afirma que os amores felizes ofendem a justiça, derrubam os cumes da moral, elaboram línguas, rituais e cerimônias compreensíveis apenas para os dois amantes envoltos nesta cartografia emocional. O mesmo vale para a recomendação de “morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida”, um mantra que eu repetiria para mim mesma muitas vezes ao longo dos anos. A obra mais recente da autora publicada no Brasil, intitulada “Para o meu coração num domingo”, contém um poema de arrebentar o peito, retratando um casal que, no momento de sua separação, roga por um milagre, uma clareira que salvasse a união. E ela não vem. Ambos se perdem um do outro.
Szymborska afirma que escrever nada mais é do que sentar diante do papel e esperar por si mesmo. É uma sentença enganosamente simples. Porque este “si mesmo” a que se deve esperar não admite subterfúgios. É um encontro com a crueza interior, subtraídas as camadas superegóicas que limitam a expressão: a vergonha, a insegurança, a hesitação, o pudor. Sei que não exagero quando afirmo que as palavras de Szymborska, não apenas uma, mas reiteradas vezes, salvaram a minha vida. Eu não leio em polonês, então é uma tremenda sorte contar com a existência de pessoas como Regina Przybycien e Gabriel Borowski, que verteram estas palavras para uma língua que compreendo. E, acima de tudo, é uma sorte que Wislawa um dia tenha sentado diante de um papel e aguardado por si.