Nem cachorras, nem princesas: a virgindade no fogo cruzado entre o céu e o inferno
Descobri um canal do YouTube, com mais de um milhão de inscritos, de um casal cristão, que produz material sobre esperar e deixar o sexo para depois do casamento. Dizem aos jovens que o relacionamento não serve para satisfazer a carne, e muito menos pra beijar na boca: é pra casar.
Ouvi da mulher: “Ou você para de sem-vergonhice ou continuará sofrendo”; “no reino dos céus, não entram fornicadores.” E o homem pede que as meninas não cedam ao “homem-pelanca”, apegado aos desejos da carne. Para tanto, propõem estratégias e dão dicas, como por exemplo o namoro de corte: não há proximidade física, nem beijo na boca até o casamento. Eu fiquei atônita: sexo, culpa, pureza, virgindade, por onde começar?
Na contramão dessa tendência, tenho escutado de algumas mães que seus filhos estão iniciando a vida sexual muito cedo, aos treze ou catorze anos. A tensão delas se deve tanto pela precocidade, quanto pelos arrebatamentos da idade: temem que esqueçam de usar preservativos e emerge a possibilidade de gravidez e/ou doenças sexualmente transmissíveis. E como fica a cabeça dessas adolescentes? Será que a escolha, ainda hoje, é ir para o céu ou inferno?
Antes de dialogarmos sobre as adolescentes, que tal lembrarmos da nossa época? Como você “perdeu” a virgindade? Contou para quem? E seus irmãos ou primos, como percebiam esse momento? As mudanças valorativas e éticas, em nossa sociedade, não acontecem rapidamente e são moldadas por avanços e recuos nos códigos morais. A virgindade é uma construção social e cultural, criada para colocar as mulheres em determinados lugares. Durante muito tempo, era honrada quem a mantinha. Mas será que ser virgem é ter um hímen? Seria uma delas aquela moça que nunca teve relações sexuais até o fim? Mas a penetração seria o fim de uma relação sexual? Aquela moça que já fez de tudo com o namorado, por não ter sido penetrada, é virgem?
A “perda” da virgindade é associada a algo ruim e negativo para as mulheres. Significa em algumas culturas uma desonra, defloração, uma marca que deve ser vingada com sangue. Contudo, podemos observar que a religião, a cultura ou a região em que essas jovens estão inseridas incidem sobre o modo como encaram essa relação.
A iniciação sexual é marcante para a construção da identidade e, dependendo da cultura, o acesso a essa atividade estatutária da vida adulta se dará mais cedo ou mais tarde. Há questões também que são peculiares a nossa cultural ocidental e diferente em outras regiões. Por exemplo, na África subsaariana ou subcontinente indiano, era comum estimular a entrada das mulheres cedo na vida sexual, ainda na puberdade, para assegurar que os homens mais velhos dominassem sexualmente essas meninas.
Já nas culturas latino-americanas, o controle da família sobre a sexualidade das mulheres busca retardar, o quanto puder, o início da vida sexual. A educação que recebem também ajuda a forjar esse modelo almejado pelas principais instituições: família, escola ou igreja. Para muitas, durante algum tempo, o prazer sexual foi objeto de grande repressão e esteve ligado ao medo de perder a virgindade e ser descoberta. Nesses tempos pretéritos, mas não tão longínquos assim, as mulheres deixavam de ter relações sexuais não pela ausência de desejo, mas pelo medo de uma gravidez indesejada. O sexo era cercado de tantos tabus, culpas e temores que sobrepujavam o gozo.
Os estudos de gênero têm nos permitido observar que vivemos numa sociedade bipolar que divide o mundo entre o que é próprio dos homens e o que diz respeito às mulheres. Há uma valência diferencial dos sexos que atribui elementos positivos à masculinidade e negativos à feminilidade. Ou seja, aos homens são atributos ligados à fortaleza, rigidez, dureza; e às mulheres, fragilidade, doçura e moleza. As mesmas culturas que colocam o corpo da mulher sobre o controle das instituições, afrouxa a sexualidade para os homens, mantendo-os num lugar uniforme: desde muito cedo são levados a provar a masculinidade com prostitutas ou iniciação com mulheres mais velhas, com fins de mostrar seu desempenho sexual.
As “novinhas” ainda são pensadas e valorizadas nos catálogos imaginários ou digitais, nos quais recebem pontos por suas particularidades, divididas entre as virtuosas e as perdidas; as pra casar e as pra transar. As últimas, são aquelas que vivem à margem de uma sociedade do respeito; e as virtuosas são aquelas que seguraram sua honra e não sucumbiram ao desejo dos namorados. As próprias mulheres se valem desse léxico para valorizar o seu capital.
Não perca tempo: dialogue com suas filhas (e filhos), sobrinhas, alunas, sobre sexualidade, virgindade, assegurando a elas uma dignidade para encarar suas próprias questões. No Brasil, temos cultos de pastoras evangélicas que pregam a castidade e o controle dos desejos, como Sarah Sheeva, filha de Baby Consuelo, que se identifica como ex-ninfomaníaca, e diz transformar “cachorras” em princesas. É bem fácil cair nesses discursos que atingem diretamente a fragilidade emocional, a autoestima e a dor das jovens, quando há ausência de um espaço de conversa, e se relega a sexualidade à interdição ou ao medo.
Em 2020, o Ceará registrou uma média de seis abortos por mês entre meninas de 10 a 14 anos. Dialogue, respeite, e acima de tudo, lembre como foi com você. Fica mais fácil de entender que o caminho não é o da proibição! Quando eu era adolescente, havia uma brincadeira que dizia assim: “Não pense na vaquinha amarela, não pense na vaquinha amarela, não pense na vaca amarela…”