O diálogo com os vaga-lumes
Fiquei de contar como travei um diálogo com os vaga-lumes. Tive que voltar a acessar meu diário para me lembrar de alguns detalhes e pensar em como traduzir esta história.
Estava em Cuba, na Serra Maestra, estudando documentário, e tenho que ser sincero: a cada passo que dava, entendia que a melhor forma de contar histórias sobre o real era recordar as que aprendi com o meu vô no sertão do Cariri.
Essa introdução é importante, para que justifique o que o chamo a entender nas linhas a seguir. Vamos do sertão do Cariri a Cuba, e garanto que isso vai fazer muito sentido.
Um dia, no Festival de Cinema É Tudo Verdade, contei essa história, diante da pergunta: o documentário fala a verdade? captura a verdade? Cada participante armava sua resposta, embasando sua argumentação, citando diretores, causos.
Nesse sentido, acho que o mais importante deles é o Flaherty e seu filme Nanook, rodado no Polo Norte, com os esquimós, considerado o primeiro documentário já feito, onde o Nanook aparece casado, mas não é casado, e aparece caçando com arpão quando já usava armas. Enfim, um filme fabulação. Moreira Salles vai dizer que esse é considerado o primeiro documentário, não pelo compromisso com a verdade, e sim pelo seu interesse em contar uma história.
Eu, diante da pergunta, preferi contar a minha versão do que acho que é documentário. Busco a resposta no Cariri e na nossa maneira de contar histórias, no meu vô, nas foto-pinturas.
Meu vô me contava muitas histórias no alpendre de casa. Um dia me contou que seu amigo veio lhe visitar, já velho, sabendo que ia morrer. Estava se despedindo dos amigos porque ia fazer um exame em Juazeiro do Norte e sentia que não ia voltar.
Verdade ou mentira?
Meu avô tinha 90 anos, e vários dos seus amigos já tinham vindo se despedir dele. No sertão, as pessoas sabem, sentem, quando chega seu momento, sua hora. E assim foi, seu amigo lhe veio visitar, e dia seguinte pela noite um vento soprou forte pelo telhado, soprou duas vezes, tão forte que meu avô despertou, levantou da cama e escutou três batidas na porta.
– Quem é?, gritou meu vô.
Três outras batidas vieram. Ele entendeu, era seu amigo, morto, sua alma que vinha lhe visitar.
– É João?, gritou ele outra vez.
Soprou o vento forte de novo e três batidas na porta. Silêncio. Meu avô rezou, entendia que era ele pedindo oração. O ventou cessou, as batidas pararam.
É verdade? é mentira?, perguntei para quem fez a pergunta sobre documentários. E faço o mesmo com você que lê essas linhas: é verdade? Meu avô mentiu? Eu creio que não. Independentemente da minha fé, sei que é a verdade de meu avô, e acredito que aconteceu. A história é boa, a verdade dessa história é boa.
Nós, sertanejos, fabulamos o real. E assim contamos a nossa história. Então, para você que vai ler essas próximas linhas, saiba, tudo o que aqui vou contar é verdade e encontrei assim escrito no diário do dia:
***
23/03/16
Serra Maestra, Cuba.
Andavam circundando pela noite, nos traços de luzes, que os contornavam. Circulavam e se aproximavam cada vez mais, tornavam-se cada vez mais presentes. Cerca.
Seres de luzes me abençoavam. Me contavam histórias, só podia segui-las com os olhos cansados.
Será que um cineasta não pode ler a luz?
Tentava desvendar que histórias esses seres me passavam, talvez não podia lê-las porque era o exato momento que as escreviam.
Ontem seres de luz escreveram sobre mim, em uma noite de lua cheia na Serra Maestra.
Já faz alguns dias que ando pela Serra Maestra, planejando meu filme. Fiquei até mais tarde com o fotógrafo José fazendo a pré-produção/investigação. Acho que não tenho filme. Mas não tem mais tempo de produzir outro, ficou tarde e acabei indo caminhando até onde estou dormindo. Foi um dia de chuva, e então havia ainda alguma neblina nos montes. Pouco a pouco, o céu escureceu. Não existe por do sol na Serra Maestra. Estranho viver assim, não tenho o por do sol, não tenho o mar como referência… Fortaleza não sai de mim.
O sol sempre desce por trás das montanhas. E não sei por que, não tive medo da noite, do dia que escurecia, o caminho era de mata e tinha que seguir a estrada que contornava o rio, que ainda andava baixo por aqueles dias. Dentro de 5 dias, seria impossível atravessar, mas naquela noite, não. Não havia luz, muitas casas aí não tinham, não havia postes. Enquanto o sol se escondia, os vaga-lumes me seguiam, curiosos daquele novo habitante, intruso no seu caminho. Sabiam eles que eu escrevia com luz? Certeza… que conheciam minha arrogância.
Desceu a noite e, quando vi, caminhava cercado por eles. Quase que iluminavam meu caminho. Se não tivesse cuidado, acabaria sendo levado por eles. Caminho úmido. Cheio de histórias. Insistiram comigo nesse dia e acabei entendendo o que queriam me contar.
Entendi que esses seres minúsculos carregavam histórias, contadas para eles, vista por eles. Sua função era esta: escutar e contar histórias, passadas de geração em geração. No seu desespero, tentavam nos contar: o ser humano não é um bicho de escuta nas cidades. Mas parece que na Serra Maestra tinham mais sucesso nisso. Me contaram uma, que agora vos digo:
Uma vez, certo menino cresceu homem sem saber falar. Sua forma de se comunicar era pela escrita, e somente escrevia aos passos, com os pés. A cada caminhada, uma escrita, e foi assim a sua vida. Quando menor, escrevia pequenos poemas, cheios de significados para si, talvez não tanto para outros. Eram passos cheios de doçura. Até que pisou em espinhos, crivou seus pés no caminho. Sangrou e começou a fazer frases mais longas, elaboradas, um pouco mais cheias de razão e de sentido, aprendeu a escrever “correto”.
Com pés protegidos, tomou coragem e escreveu romances, páginas e mais páginas. Andava muito para escrevê-los, grandes distâncias, às vezes 10km em um dia, ou mais. Passaram-se os anos. Cansado, escrevia menos, com menos passos, menos histórias. Mas cada passo dado era certeiro, correto nas palavras, até que viu que não precisava ser tão calculado nos dizeres, lembrou-se dos primeiros passos, daqueles em que titubeava, que vacilava na escrita. Gostou, voltou aos pequenos poemas. Caminhava menos, mas não deixava de escrever, cada pé no chão, o seu arrastado soava como música. O que o físico não lhe dava ele completava nos gestos do caminhar.
O menino virou homem, envelheceu, o homem virou menino, depois com o tempo esqueceu de como era caminhar, foi esquecendo de escrever, de contar histórias de quem era, esqueceu seu nome, sua idade, esqueceu de quem um dia amou, de quem um dia feriu seus pés, depois de esquecido tudo, estava tão leve, que podia caminhar de novo, agora com os vaga-lumes, se quisesse.
***
Talvez tenha ficado um pouco longa essa história que contei. Se você ainda está comigo entenderá o porquê. Como fotógrafo, aluno, estudante, fui para Cuba cheio de conhecimentos, de como fazer, ou de como contar histórias, e ainda me fui enchendo de muitos outros lá. E pouco a pouco, com os vaga-lumes, vi que não, não sabia nada, aprendi a desaprender a fazer imagens. Lembrei-me das histórias de meu vô e do tempo sentado no alpendre com ele.
No calor do Cariri, ele me contava suas histórias. Vez por outra, alguém vinha e nos contava uma também – essa era guardada e transmitíamos a outro. O alpendre da casa de meu avô foi meu primeiro cinema, onde ouvia e contava histórias. Tive que ir a Cuba para entender isso. No caminho feri tanto os meus pés, como se andasse descalço nas veredas da caatinga.
Lá na Serra, escutei essa dos vaga-lumes, e quis contar as minhas para eles em retribuição. Devo dizer, são ótimos ouvintes esses pequenos seres de luz. Contei muitas das que ouvi no calor do semi-árido, algumas posso partilhar com vocês algum dia, se quiserem. Mas a maioria somente eles podem contar.
Do meu caminhar pela Serra, surgiu um filme e uma série de fotos úmidas, que chamei Incunábulo, mas a história dessas fotos é melhor que fique para outro momento. Por ora, deixo as imagens da minha primeira escola de cine (Cariri). E agora já sabem: se vir algum vaga-lume por aí, pergunte por mim.