O que fazer do que fizeram de nós?
Na virada dos dezessete para os dezoito anos, comecei a fazer trabalho de campo em Antropologia, pesquisando guerra colonial na Amazônia. Eu era uma fedelha me voltando para um processo de longa duração em uma região marcada por desigualdades e violência, lutas e resistência. Minhas atividades consistiam em sentar diante de mesas e entradas de casas, caminhar por roçados e ouvir mulheres indígenas contarem da dor vivida em seus corpos. Relatos de racismo, estupro, deslocamentos forçados, violência obstétrica somavam-se às lágrimas e à indignação, muito próprias dos caminhos de rememorar, pela linguagem, situações vividas como eventos devastadores.
Um fio delicado de escuta se teceria nas minhas relações com estas pessoas durante cerca de seis anos. Minha maioridade intelectual aconteceu a partir destas relações. Um entendimento mais denso sobre as violências a que eu mesma fora exposta por ter nascido mulher em uma sociedade que, de forma geral, odeia mulheres, também foi se desenvolvendo. Houve um ponto em que o acúmulo dessas muitas palavras misturadas precisou de endereçamento emocional, para além da escrita dos trabalhos acadêmicos. Foi quando decidi me submeter a uma Psicanálise.
No bojo, a Antropologia, disciplina à qual me dedico há dez anos, costuma fornecer boas respostas acerca das violações que atingem os corpos das pessoas. Colonialismo, racismo, misoginia, heteronormatividade e outras formas de produzir separações em torno de quem é humano e quem não é são alvo de interesse dessa tradição teórica. No entanto, esse tipo de entendimento, de caráter político, nem sempre é suficiente para apaziguar a memória da violência do ponto de vista subjetivo.
Ainda persistem as perguntas: “Por que isto aconteceu comigo? Eu mereci? Eu tive culpa? Como viver a partir de agora? Se existe Deus, por qual motivo ele não me poupou?”. Até hoje é difícil encarar, como era no momento da publicação de Eichmann em Jerusalém, a proposição de Hannah Arendt de que o mal é banal, e não uma propriedade exclusiva e excepcional dos perversos e dos monstros. Ele é transversal à vida social.
Este tipo de pergunta, repetida por minhas interlocutoras de pesquisa e por mim, dentro de um setting analítico, revela a existência de uma angústia humana bastante singular, a da busca pelo sentido. Trata-se de uma tentativa precária de narrar a si mesmo, de poder dizer quem se é, de forma imperfeita, e o que lhe aconteceu ao longo do caminho.
Em última instância, ao tentar outorgar ao mal e à dor um significado, reivindicamos também, de certa forma, o fim do mal e da dor. Contamos histórias para que o outro (e nós mesmos) nos ouça e nos reconheça. E, ao nos reconhecer, admita também que a nossa vida é digna de ser vivida.
Por isso, a insistência em rememorar o passado – esquecendo também de muitas partes, porque a memória é uma ilha de edição – é uma das principais formas de sobreviver psiquicamente ao mal que nos foi feito. Por isso, Petra Costa, em seu filme Elena, afirma “queriam que eu te esquecesse, Elena” e ainda assim, teimosamente, produz um filme inteiro sobre o suicídio da irmã. Por isso, a Psicanálise é chamada por Anna O., a histérica paradigmática, de “cura pela fala”. Por isso, fazemos comissões da verdade. Por isso, em protestos políticos, chamamos pelo nome dos nossos mortos e respondemos “presente” no lugar deles. Porque silêncio é terror.
Cria-se em torno do silêncio uma amálgama corrosiva de vergonha, medo, encolhimento e apagamento capazes de tornar as pessoas progressivamente mais invisíveis. Na batalha pelo sentido, a rememoração e a linguagem são instrumentos poderosos.
O que me parece importante ressaltar é que negar o mal, fingir que a dor não nos acomete, engolir o choro, estrangular a saudade são estratégias muito primárias de continuidade no mundo. Viver possui um componente, em maior ou em menor grau, de tragédia, de pura arbitrariedade e de erros e tropeços que nos convidam a nos implicarmos neles. A fazermos algo do que fizeram de nós, sem nossa autorização, ou com nossa colaboração.
A parte mais dura e difícil do enfrentamento de si consiste em olhar para um sofrimento, se encarar no espelho e perguntar: E aí? O que farei agora de mim, perante o que não pode ser apagado? Como pretendo viver a vida daqui em diante? Nesse momento, o mais difícil de todos, o de sair de um lugar de passividade para tentar algum grau de emancipação, você está invariavelmente sozinho.
Entre a repetição e o desejo
Gosto da ideia de Butler, a filósofa americana, de que não é porque nascemos em uma matriz desigual de poder que precisamos, devotada e apaixonadamente, continuar reproduzindo esta matriz ao longo da vida. Mas a repetição é um mecanismo radical de alienação: introjetar irrefletidamente as forças de lei que te ensinaram e repeti-las, ainda que isto signifique pecar contra seu próprio coração de forma mortal.
Contar e recontar para si mesmo a própria história na busca por novos sentidos permite, humildemente, que você adquira a competência de reconhecer aquilo que deseja. E que aprenda a separar o desejo daquilo de que abrirá mão, porque não faz mais sentido após este aprendizado.
Eu acredito – senão não faria nem pesquisa, nem militância – que o passado, a socialização, a violência, podem até nos formar, mas não nos definem. E acredito que escavando fundo dentro de si, a infelicidade, a obediência, a dor a que o submeteram podem ser reelaboradas. Sem que seja necessário destruir o outro ou se deixar destruir.
Certa vez, uma interlocutora de pesquisa, indígena e idosa, me advertiu que era preciso cuidado, porque sem perceber você poderia um belo dia abrir os olhos e se ver com os dois pés no inferno. A esperança que me move é que a gente não desista de se enfrentar, para que nossos infernos não sejam passados adiante. Para que o inferno pare em mim e pare em você.