O trem que chega não é o mesmo da partida
Quando ela voltou, tudo estava pequeno. O muro da casa, em que serpenteava a bougainville, numa pequena luta para ganhar o mundo, continuava ali, mas na sua memória recordava-a maior. Tinha ares de floresta, quando se somava às mangueiras, pés de seriguela e romãs.
Olhava para as nuvens e esperava que elas fizessem sentido. Agora, por mais que olhe, vê apenas um amontoado de ar e água, sem mensagem alguma. Ela perdeu o encantamento de decifrá-las ao partir, pois, na pressa da grande cidade, a vista se perde nos milhares de estímulos e fica-se na solidão das multidões. Ela é ar, flerta com o fogo, mas seu pacto é com as águas. Só quando flutua sobre ela, sente que medita, se perde em pensamentos desconexos e recorda calmaria.
Ainda existe um clube na cidade, em que ia aos sábados com as amigas, sob protesto do pai, que não entendia o porquê de ir para lá, nadar com as meninas e meninos, podendo ficar naquela piscina que tinha em casa. Recordava que a do clube era oceânica, lembrava-se dos mergulhos profundos e dos movimentos perturbados das suas pernas, freneticamente, tentando atingir a área seca, para salvar-se da ausência de ar. A piscina continuava lá, desta vez seca, mas minúscula. Era a mesma. Ela, não. Tudo lhe parecia descomunal à época. O que aconteceu agora? Que dimensão era a real? Antes era grande demais porque seus horizontes eram menores, ou, em meio a outras grandezas, perdeu a noção das pequenas coisas?
Pega o carro para comprar alguma bebida e sair daquele estado melancólico, e parece não ter ninguém na rua. Volta pra casa dizendo que os comércios estavam todos fechados com a pandemia e descobre que a cidade mantém seu hábito de descanso de duas horas, entre o almoço e as 14h. A sesta parou o seu tempo. Entendeu os motivos das mensagens de WhatsApp enviadas, que levavam dias, perdidas no tempo, até obter a primeira resposta.
Ali ela se sentiu tal qual Genet, uma antípoda de si mesma. E que Didier Eribon, em Retorno a Reims, ratificava como “um espaço social que mantinha à distância, um espaço mental contra o qual ele havia se construído, mas que não deixava de constituir uma parte essencial do seu ser.” O tempo perdido não se recupera, mas quando a mulher volta, sofre um estranhamento brutal que a faz perplexa sobre que caminhos tomou na vida, e como seria se ela, tal qual as flores trepadeiras, tivesse ficado. Continuaria lutando para fugir, ou ficaria com aquela beleza plácida que elas têm?
Recorda de si, ainda pequena, das brincadeiras sem fim na rua; do cheiro de terra molhada aos sábados de manhã, enquanto a mãe limpava o peixe a contragosto, e aquela domesticidade lhe arrancava um gosto de felicidade; e de andar sempre descalça, adivinhando as estações pela sola do pé. Por que partimos dos lugares com excesso de amor e cuidados?
Quando partiu, sentia-se sufocada, pois as cidades pequenas parecem ter grandes olhos a observar, minuciosamente. Partiu pelo estrangulamento de suas liberdades, pela ausência de ar para enfrentar algumas situações apequenadas diariamente e confidenciou ao pai: “Se continuar aqui, vou me perder de mim.” O pai sempre teve medo daquelas palavras, e parecia aguar as plantas com as águas que transbordavam de dentro de si, naquele momento. Ela, seu amor primeiro como pai, ia embora, e a grande prova do seu afeto era deixá-la ir. Já tinha ensinado tudo: “Vá, filha, seus ouvidos já cansaram de ouvir tantas recomendações, pois, se pequei, foi por excesso de amor”, poderia ter dito.
Osman Lins, em A partida, narra como um dos motivos para deixar sua casa no interior as cadeias de disciplina e de amor. E conta: “Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a afeição da minha avó incomodava-me. Era quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que não pudesse despir. Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modo, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa, amorosa e justa.”
Tal qual a criança que, quando nasce, dói a entrada de ar pela primeira vez nos pulmões, ela partiu, com seus manuais invisíveis que carregaria para o resto da vida sobre as constrições e os modos de comportar-se. Na cidade grande, ela encontrou seus próprios passos, percalços e atribulações, ao que sempre olhou de frente, numa interlocução com o que ele diria, como um rádio perdido em alguma estação, mas mediando com suas próprias intuições e desejos. Ela seguia experimentando novas formas de olhar a vida, de conhecer mais sobre as coisas.
Dia desses, ela contava para seus amigos que o primeiro livro que pediu ao pai, numa época sem Internet para baixar, ainda no início do Ensino Médio, foi O Capital, de Marx. Sabe-se lá o que aquela menina queria com uma obra que jamais daria conta naquela idade, mas o pai conjecturou que ela queria revolução e disse que ia procurar, mas não o fez. Ele tinha guardado em sua memória os amigos que mergulharam no Araguaia, e que balbuciavam o nome desse autor, e nunca mais foram vistos. Previu que eles e a filha eram de naturezas semelhantes. A filha podia até partir, mas que não fosse pra sempre.
Didier afirma que tudo do que fomos arrancados ou que gostaríamos de arrancar continuam como parte integrante do que somos. Mesmo partindo, sair da cidade confundia-se com a ruptura do zelo do pai, que fez da distância, saudade. Regressar é lembrar que o excesso de amor e de cuidado também dói, impede de crescer. Hoje ela entende que, quando se ama, perde-se a medida do cuidar, embriaga-se em devaneios sobre tudo o que pode não dar certo, e esquece-se que amar anda amigado com a tessitura da liberdade. Pai, ficção ou não, precisava cerzir suas palavras ao tempo certo de ouvi-las. Agora eu sei. Feliz dia!