Bemdito

Perder no jogo

Quando a relação amorosa se trata de um jogo, perde-se a espontaneidade própria das paixões
POR Raisa Christina
The Valour Of Love (Abraham Solomon)

Uma amiga, em tom professoral, costumava aconselhar a outra, romântica, a não responder de imediato as mensagens do paquera, nem ir dizendo abertamente o que sentia, pois devia entender sobretudo que a relação amorosa se trata de um jogo, às vezes com regras precisas, no qual a espontaneidade não nortearia os lances dos seres envolvidos. Esse discurso nunca me convenceu, pelo contrário. Sigo sem entender quais as vantagens do ingresso no tal jogo em que se deve camuflar o que há de mais inequívoco na vida. 

De certos prazeres, não abro mão. O gozo ao declarar amor, paixão, desejo pelo outro é algo que aprendi a realizar sem dar muitas voltas. Desconfio dos conselhos que tendem a podar a manifestação genuína dos sentimentos, essa coisa que soa piegas e palavra nenhuma consegue conter nas suas reais dimensões. Não se pode atar nem civilizar um corpo apaixonado. No campo dos afetos, a meu ver, vale mais a liberdade, um bicho silvestre em campo aberto, do que o cumprimento das normas de conduta.

O que se ganha ao calar o corpo apaixonado? O estado de paixão possibilita raras brechas em que se consegue acessar modos de percepção diferentes da racionalidade padrão que é socialmente imposta e exigida a todo instante. Muito de nós se revela quando nos encontramos imersos nas águas densas da paixão. É uma oportunidade de se conhecer numa dança sempre experimental, de provar impulsos químicos avassaladores, de aprender a lidar com ansiedades, decepções e desvarios.

Se o acidente aconteceu e você se encontra perdidamente apaixonada, que fatores lhe impedem de desfrutar a situação? Parece haver uma aura de terror em torno da possibilidade de se levar um fora. Se considero a gramática do jogo, aceito perder sem grandes traumas. Afinal, o que de fato se perde, o que se atinge com um fora? A honra, o ego, a moral, o orgulho? Todos esses substantivos abstratos me trazem ranço. 

Antes mesmo de saber se o outro também está arrebatado, importa sentir a serpente da paixão inflamando cada região do imaginário, formigando a pele, corrompendo os gestos mais corriqueiros. Porque a coisa começa a ganhar volume é por dentro da gente e o processo, entre doloroso e bonito, precisa ser acolhido e se alastrar, tomar de conta.

Na expansão da serpente, pode dar-se o gozo de declarar para si mesmo o total encantamento por alguém. Depois um segundo gozo, que é o de por em palavras, diante desse alguém, o sentimento estranho que é ativado na sua presença. Também na ausência da pessoa amada o alvoroço pode se instalar: basta um aroma específico a varrer os ares ou os primeiros acordes de certa canção e já não há concentração possível pelas próximas horas.

Portanto, vou na contramão de minha amiga conselheira e ponho tudo a perder. Deixo a serpente às claras, digo o que quero, convido para a dança, não penso duas vezes. Então observo e escuto o outro. Noto o espaço que se precisa cultivar em volta para que a respiração aconteça plena. Se der vontade, prolongamos o encontro. Se não, o amor e a paixão se desenham de outras formas, inesgotáveis. 

Raisa Christina

Artista visual e escritora, tem mestrado em Artes. Trabalha com ilustração e ministra formações em desenho, pintura e arte contemporânea.