Bemdito

Sobre o tempo, lágrimas e corações partidos

A vida corre aos atropelos e alimenta a nostalgia das experiências que ficam pelo caminho
POR Paula Brandão

“Tempo, tempo, mano velho
Falta um tempo ainda eu sei
Pra você correr macio
Como zune um novo sedã”

Hoje eu tô besta pra chorar… meu coração amanheceu lembrando que eu tinha que parar de adiar o arrumado no quarto do meu filho. O que significava retirar todos os brinquedos de sua infância que não usa mais. Como mãe posso muita coisa, mas pouco posso sobre o controle do tempo. Meu pequeno cresceu e a mãe dele não percebeu. O “se-dar-conta”, não se deu. Se perdeu entre aqueles risos sapecas que ainda tem, um carinho perdido e a garantia que não tem como protestar em cartório, de que sempre estaria comigo. Quando ele tinha quatro anos, eu disse: “Filho, olhei pra você e pensei que amanhã será um rapaz.” Ao que respondeu: “Mas vou ser ainda um filho!” Alguém sabe como superar a perda do que não se foi? 

Aquele menininho não está mais aqui, e agora cresce um rapaz que tenho olhado o dia todo, muito atenta, e procurado as características do outro. É o mesmo e não é. Ele tem a fortaleza de quem desbrava os próprios caminhos sem precisar de ninguém. Mas ora, até ontem era eu quem o segurava pela mão anunciando por onde devia ir. E agora? 

Sigo a rotina desse dia árduo, abro o instagram, e vejo um vídeo postado por Ricardo Stuckert, em que uma jovem negra parava o Lula da Silva, em Paris, no meio da rua, muito emocionada, e dizia: “Eu estudei no Brasil graças a um convênio que o senhor assinou.” E ele se interessa e pergunta em que ela tinha se formado, descobrindo que foi em Ciência Política, na UFRJ. E ela estava agora naquele país fazendo o doutorado. Ela pede uma foto, e ele responde: “Claro, meu amor.” Caí no choro de novo. 

Que saudades do passado! Como eu poderia ser feliz voltando aos anos em que nesse país falava-se de amor, se parava as pessoas na rua para abraçar e se emocionar. Rememorar o tempo em que era estudante e chamava brincando meu presidente de “pai,” cada vez que entrava minha bolsa de pesquisa de Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado. Mas essas recordações, por vezes, parecem sensibilidades perdidas. Marcelo Jacques de Moraes, ao apresentar a perspectiva proustiana, na obra Um amor de Swann, diz que:

“Trata daquilo que, desse vivido, por não corresponder aos anseios e interesses de um determinado indivíduo num determinado momento de sua vida, se experimentou como tempo desperdiçado – ou daquilo que restou como pura latência e nem sequer se chegou a experimentar como vivido. E é justamente porque o tempo perdido é um tempo que vivemos sem nos dar conta da virtualidade infinita de cada instante vivido que rememorá-lo jamais significa reencontrar exatamente o que se viveu(…) reencontrá-lo é encontrar nele algo que, no momento em que vivemos não se dispunha à percepção.”

O passado tem me feito companhia nesses dias, numa nostálgica presença do que talvez nem tenha sido. Mas é com muita candura, que tenho parado as moças nos bares, a perguntar quase que em devaneio: “querida, como estás? E como andam as paqueras?” Não é uma curiosidade só pra saber. É para sonhar que, inobstante os tempos sombrios que temos passado, ainda há amor em Fortaleza. Parar o(a) outro(a) e querer saber mais do que ele/a diz, é driblar o desconhecimento do momento vivido. Soube de um homem e mulher que começaram uma paquera, num bar, mas foram embora separados, tendo o rapaz preferido pedir o contato para o garçom e depois se aproximar dela pelas redes sociais. Quantas reservas, quanto medo de contato cara a cara!

Fiquei a olhar os(as) sobreviventes daquele bar, e as interações entre eles(as). Olhava para todos os lados e me perguntava: Por onde anda aquele olhar arrebatador, comprido, que era capaz de deixar a pessoa faceira, com olho brilhando e os “pés fora do chão”? Aquela paquera que te desviava dos rumos do dia, atrasava o taxi e te fazia demorar na rua a abrir o próprio guarda-chuva, por que bom mesmo era companhia para se molhar? Cadê aquele olhar que duvidava a insistência do outro, e acreditava que a fantasia podia estar a conduzir a sua percepção? 

A pandemia além de ter tirado de nosso convívio mais de meio milhão de pessoas, também terá culpa, ao nos ter tomado dois anos de nossas sociabilidades; da mãe que com os olhos cansados de tanto olhar, nem viu o filho crescer; das mudanças mais aceleradas do processo de paquera, que já foi para o beleleu virtual, e das saudades do passado? Ouvi um dia desses que para as crianças que perderam esses dois anos trancadas, em isolamento, e com pouco acesso as salas de aula, o prejuízo seria imenso.

E para as pessoas adultas? Menos grave o descaminho daquele amor que não teve chance de vingar ao ter sido, bruscamente, interrompido pela pandemia? Das pessoas que se perderam umas das outras, pelo lockdown? E os amores pandêmicos assíncronos, que se fizeram fora do tempo e já nasceram com 7 anos de duração? A falta de uma temporalidade para viver e maturar as vivências, saiu atropelando os nossos sentidos, e é evidente, quando olhamos para a cidade e percebemos a tristeza resplandecente. O tempo perdido não se recupera.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).