Bemdito

E eu não sou uma mulher?

A pandemia levou à suspensão da ideia de que a mulher precisa performar determinados papéis, gestos e cuidados femininos
POR Paula Brandão
Venus at her Mirror (Diego Velázquez)

Sojourner Truth, em 1850, ex-escrava e única preta numa Convenção nos EUA, viu-se interpelada pelo líder dos homens presentes, que disse não saber para que as mulheres queriam votar, se elas sequer pulavam uma poça ou embarcavam sozinhas em suas carruagens sem ajuda de um homem para conduzi-las. 

Ao se deparar com essa diferença, não só de cor, entre as mulheres brancas ali presentes, mas também de classe, ela rapidamente constatou que nunca foi ajudada por um homem em tais circunstâncias e que ela trabalhara tanto quanto eles na agricultura, aguentando chicotadas iguais às deles, e interpelou: “Não sou eu uma mulher?”

Essa questão fica me revisitando, a cada leitura desse texto. As mulheres são diversas, mas, arriscando uma perspectiva mais geral, o que fundamenta a construção das nossas identidades femininas? Certamente, atentaremos para os padrões que nos promovem aos corpos mais manipulados culturalmente. 

Numa rápida mirada na internet, os corpos mais expostos continuam sendo os nossos. Mas qual deles tem a senha para se mostrar? Os otimizados, restritos às normas da estética e da dietética, são os que podem desfilar sem cancelamentos. Corpos lustrados por óleo de coco e pequenas porções de testosterona para potencializar os treinos, sucos caros, chá que seca, e todo um discurso de que existe um padrão para a mulher, o corpo cada vez menor, e o homem, maior. 

Esse ideal nos faz perder tempo – usado pelos homens para concentrar capital cultural e econômico – nas filas do embelezamento: lábios grossos, dentes brancos, silicones, botox para perder qualquer expressão dos sentimentos – imagina aquela ruga entre as duas sobrancelhas e três marcas na testa que significa que você está pensando -, harmonização hormonal e facial. Veja bem, aqui não é um manifesto contra o que quer que se queira injetar na testa ou no corpo! Estou apenas tentando levar a cabo a missão de perguntar se precisamos mesmo disso e se algo mudou, nesse último ano, que a levou a repensar essas práticas. 

No Mito da Beleza, de Naomi Wolf, escrito em 1990, a autora revela que à medida que íamos nos livrando dos comandos domésticos, cresceram consideravelmente as exigências com a beleza, ou seja, nos tornamos independentes. Mas nossas energias foram canalizadas para alcançar os mais altos modelos de beleza.

“A maioria das mulheres que trabalham, têm sucesso, são atraentes e equilibradas. Mas existe uma subvida secreta que envenena nossa liberdade: impregnada de conceitos de beleza, ela é um escuro filão de ódio a nós mesmas, obsessão pelo físico, pânico de envelhecer e pavor de perder o controle.” A beleza é como se fosse, diz a autora, o nosso terceiro turno.

Tenho a intuição de que as jovens têm repensado alguns comportamentos da geração anterior a elas. Agora resolveram deixar o buço e as sobrancelhas livres de depilação. À moda Frida, nossa musa eterna, ganharam uma hora a mais que perderiam no salão. 

Aprendi com a filha de uma amiga que eu estou há mais de 30 anos poluindo loucamente o planeta, pois essa galerinha se preocupa em usar calcinha menstrual e coletor, descartando os antigos absorventes que destroem o mundo. Em pesquisa sem nenhum amparo científico, dessas hoje valorizadas, perguntei no meu Insta sobre buço peludo e calcinhas sustentáveis: gente, só deu a galera de 18 a 25 anos, com raríssimas exceções!

Talvez grande parte de nós – me refiro àquelas com mais de 30 anos – tenha sido ensinada, desde muito cedo, a gostar de determinadas coisas que serão sempre nossas inimigas. No livro Em Carne Viva, o cirurgião plástico Charles Jean alerta que, para compreender as intervenções cirúrgicas ou estéticas, deve-se ir além do aparente e das barreiras impostas pelo tempo e pela cultura, e colocar-nos em carne viva, ultrapassando os limites do olhar, para ver o que está além da superfície. 

Rastreando o meu passado e ouvindo as amigas, lembramos de nossas mães estirando nossos cabelos com toda força para que amanhecessem sem cachos e aprendemos que cabelo liso é mais bonito. Uma delas me disse que apenas sua irmã tinha laços, pois os cabelos eram belos! 

Ouvimos também “Se você comer mais um pedaço, vai engordar”, compreendemos: se você não for esbelta, não vai ser amada. E assim, fomos crescendo e achando que tínhamos que performar determinados papéis, gestos, cuidados femininos. Toda semana, passamos horas em salões de beleza sem questionar se aquilo realmente importa! Mas na pandemia, tivemos uma suspensão desse cotidiano, e pudemos repensar: o que mudou para nós?

Várias pessoas me falaram que se reencontraram. Aprenderam a respirar melhor; amigas assumiram os fios brancos, redescobriram como são seus cabelos, vendo os cachos brotarem; outras viraram zen; ou naturalistas. Cada uma seguiu sua intuição. E eu? Tomei meus drinks e fiquei louríssima, dentro de casa! Libertador! 

Quem me encontrava no elevador ficava sem jeito e arriscava: “mulher, que coragem!” Eu dizia, “amiga, precisa coragem é pra viver nesse país, pra platinar o cabelo é só ir ao salão!” Como sempre uma rebelde do que vem se estabelecendo como consenso, fiquei loura na pandemia e botei detestáveis unhas de porcelana. Nada que eu já não tenha superado! 

Acho que eu queria gritar no movimento contrário: que não temos o controle de nada, nem com a respiração mais consciente; que, na arte de se salvar, cada uma tem seu próprio remédio; que, certamente, o estilo de vida que levamos é muito frágil, insustentável, mas que aquelas coisinhas elementares também nos fazem falta! Hannah Arendt já dizia que tudo aquilo que toca a nossa vida, estabelecendo uma relação duradoura, faz parte da condição humana. 

Enquanto eu lia e tomava meu vinho, via as pessoas despejando gotinhas de florais de Bach, e eu só conseguia me lembrar do pensamento mágico das crianças… Como seria bom mesmo que duas gotinhas pudessem mandar embora sua depressão e ansiedade! No mundo adulto, apelei para o indubitável: se até Jesus transformou água em vinho, quem sou eu pra questionar o poder do pileque! As saídas vocês já conhecem, milagrosas ou não. Tenham fé, segurem mais um pouco, que isso um dia vai acabar!

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).