Bemdito

Os preconceitos que habitam regiões e mentes

Sobre a necessidade de autoafirmação que se converte em julgamento, numa tentativa de menosprezar o outro
POR Cláudio Sena

Esta semana, puxo uma ponta de fio de alta tensão desencapado que insiste em esconder-se. Com meia dúzia de palavras e uma pitada de preconceito misturada com xenofobia, as equipes de futebol de uma região inteira do Brasil foram reduzidas à “porcaria”, a “lixo”.

De tabela, acredito que os estados também entraram neste julgamento, mas, neste aspecto, posso prever uma defesa por parte de quem classificou: falava apenas do futebol. São sempre assim, esquivos, meio Júnior Baiano quando o acusam e Neymar cai-cai quando se defendem. Olha eu aqui jogando o jogo deles e julgando. Calma, foi esse propósito. Tem fins didáticos. Olha eu aqui arranjando desculpa. Entendeu?

Aos que estão por fora da confusão, trato dos comentários do radialista Domenico Gatto, da  Rádio Energia 97FM, feitos na semana passada. Segura o estômago que lá vai: 

“Vocês estão loucos. Vocês estão se baseando em duas rodadas. O Alê (Oliveira) se baseia na Copa do Nordeste, que é uma porcaria, um lixo. Desculpa, com todo o respeito, é uma porcaria. O Bahia é o mais forte desses, talvez nem lute para não cair, mas também não vai chegar a Libertadores, é uma porcaria também, outro lixo. Vou falar que o Ceará é uma potência? É uma porcaria”.

Haaaaaaja Plasil. 

Agora, como sempre, vamos aguardar desculpas de uma “cabeça quente” ou um “não foi o que eu quis dizer”. Puxo o fio um pouco mais para ampliar a discussão sobre este separatismo silencioso. Um tabu que fatia o Brasil, atravessa o futebol e escapa para o campo profissional, linguístico, cultural, ganhando força em pensamentos e, às vezes, materializando-se em palavras. 

São diferenças geográficas que se impõem nos capilares do tecido social. Estão lá, impregnando as cabeças, alimentadas com cumplicidades e resistências. Todos estão engendrados nessa trama preconceituosa, até o presidente. No caso rememorado a seguir, o líder do Executivo recorreu ao seu peculiar “humor”, mandando ao vivo um recado ao Ceará e aos cearenses:

“Chamar cearense de cabeçudo você não consegue identificar ninguém, porque lá todo mundo é cabeçudo.”

Riu? Porque era para ser engraçado. 

É interessante essa necessidade de autoafirmação a partir da ação de menosprezar o outro, vinculando-o às questões geográficas, localizando-o no mundo. Caso deseje colocar em comparação, realizando uma espécie de sociologia relacional, a partir da ampliação das avaliações destes casos em outros países, é possível identificar recorrências. Os alentejanos em Portugal sofrem com estereótipos nada gentis. Os marselheses na França são frequentemente classificados de espalhafatosos, principalmente se comparados aos elegantes parisienses. Isso para ficar em um pedacinho da Europa e sem entrar demais em questões político-territoriais, como, por exemplo, o catalão que não quer ser basco, o basco que não quer ser galego, o galego que não quer ser andaluz e por aí vai, dentro da Espanha ou fora.

A aparente suspensão desses julgamentos torna o convívio viável, mas não faz com que deixem de existir. E de emergir em momentos de tensão. Na mínima perda de razão ou embate sem argumentos, lançam-se facilmente um “volta para a sua terra” ou um “está fazendo o que aqui?”, mesmo que a terra seja a nossa e que nós façamos parte, desde sempre, do aqui. 

Caso o leitor anime-se com a tentativa de reflexão proposta pelo texto, terá ainda um grande sertão, uma montanha, um litoral e milhares de pequenas veredas preenchidas por questões que atravessam estes caminhos do pensamento e do julgamento. Cito essa questão para confundir ainda mais as distinções de raça (existe?) e de classes sociais tão presentes no contexto brasileiro. Mas não há como tratar disso neste breve texto. Deixemos para outras reflexões, até que novas falas apontem novos ou velhos preconceitos.

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.