Bemdito

Johnathan, o menino que amei e por quem ainda choro

Eu morri com ele e vivo de alguma forma por ele: para que nenhum Johnathan tenha sua vida interrompida
POR Jamieson Simões
Shepherd Boy on a Grassy Hill (Franz von Lenbach), em Stadtische Galerie im Lenbachhaus, Munich

O ano era 2009, e eu já sentia que o mundo que conhecia em breve mudaria completamente. A conta não fechava. Uma geração inteira de meninos na periferia abandonados por pai, mãe e política pública. A bomba relógio estava sendo montada e eu sentia isso. A gangue do facão tocava o terror numa quebradinha acolá. Não havia entrega de lojas, farmácias, gás… Ninguém entrava naquele território com garantia que sairia ileso. Ninguém.

Eu prestava assessoria numa ONG internacional e, num dos projetos, havia um garoto indócil, raivoso e disposto a tudo. Não deixava ninguém encostar nele. Eu conseguia contato com todo mundo, mas ele não se permitia contato nenhum. Um dia, ousei colocar a mão no ombro dele e ele reagiu:

– Sai daqui, seu viado! Pensa que eu não vi você beijando o professor de capoeira?

Eu ri. Sempre saudei os homens que eu gosto com um beijo na face e perguntei a ele se isso o incomodava. Dois homens, amigos trocando afeto.

– É muito comum. Pai e filho se beijam e não são “viados”. Você nunca beijou ou recebeu um beijo do teu pai?!

Aqui a história se desvelou. O menino era espancado pelo pai, e a irmã, que era dois anos mais velha, arquitetou um plano para assassinar o pai a pauladas. Saber daquilo tudo era pesado demais. E oferecia uma explicação possível para tanta resistência a qualquer demonstração de afeto. 

Não desisti e mantive as tentativas de aproximação. Ao final de meses, o menino finalmente me deixou abraçá-lo. Foi uma festa. Uma amizade bonita começou a ganhar contornos. Mas eu não era o único interessado no menino. 

O traficante da área também via potência naquela fúria represada, e ofereceu um ferro e R$100 se ele matasse um desafeto em comum. Eu tentei. Usei tudo que eu poderia para chamar o menino de volta. Eu tentei. Um corpo cai. O traficante tem uma lista com outros nomes. O menino tem potência. Raiva represada. Só não tem futuro.

Era domingo à noite, eu estava no meio da homilia, e o telefone vibra no bolso. Rapidamente, olho a ligação e já sabia o que tinha acontecido. É uma prática usar adolescentes para a execução de desafetos e depois se livrar dele. É prática só olhar para esses meninos quando cometem atos infracionais graves. É uma prática torná-los invisíveis e descartáveis.

Tentei ir ao local, mas recebi o recado:

– Irmão! Não venha! A cabeça dele é um saco de pele furada e ossos quebrados. Também tá proibido fazer o velório dele.

Eu amei aquele menino. Chorei um rio inteiro por ele. Estou escrevendo e chorando porque bobamente sonhei para ele uma outra vida. O nome dele é Johnathan e eu o amei. Na nossa última conversa, ele me deu um abraço apertado e disse que me amava como um filho ama o pai.

Lembro-me dele com frequência e tenho a leve impressão de que tudo do pouco que sou e faço é por ele. Eu morri com ele. Eu vivo de alguma forma por ele. Para que nenhum Johnathan tenha sua vida interrompida, sua potência cooptada, para ser a bucha do sistema. Eu tenho raiva do mundo que me roubou um amor.

Jamieson Simões

Pesquisador em juventude e violência, é assessor do Comitê Cearense de Prevenção à Violência da Assembleia Legislativa e mestrando em sociologia na UFC.