Bemdito

Vai dar certo pra quem?

Contra o delírio otimista da elite fortalezense
POR Jáder Santana
Dia de Finados no cemitério Campo da esperança, em Brasília (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Vai dar certo pra quem? Poucas coisas me irritam mais, em meus trajetos por Fortaleza, que os repetidos encontros com o estêncil “vai dar certo” ou sua variação subversiva “vai dá certo”. Certo pra quem? Pra quê? Pra Aldeota de arranha-céus e muros eletrificados, certamente. Pra eles, sempre dá. Sempre deu. Dará sempre certo. Quando dirige seu carro blindado pela geografia bem-feita da cidade, daquela cidade, o encontro inesperado com a mensagem otimista reafirma o privilégio do fortalezense cuja maior preocupação é a cotação do dólar comercial. Dá certo. Aquele buraco no asfalto, o mendigo no sinal, o calor do meio-dia, o louco no poder. Tudo passa. Vai dar certo.

Vai dar certo a nova tentativa de diálogo com o presidente. Mais uma, mais uma, mais uma. Quantas forem necessárias. Vai dar certo. Governadores se reúnem porque vai dar certo. Porque o presidente baixou o tom. Baixou o tom, agora vai dar certo. As instituições estão em crise, os freios estão no limite, o comando está aparelhado, os líderes estão ameaçados. Mas vai dar certo, basta chamar o presidente ao diálogo. Bolsonaro dá trégua. Bolsonaro garante respeito aos limites da Constituição. Pronto, agora vai dar certo. Se voltar a dar errado, Bolsonaro sempre volta a dar errado, é só esperar que logo dá certo.

Vai dar certo para a influencer de Instagram e seus seguidores. Porque tudo vai melhorar, vamos sair dessa, a vida pode ser bela, o afeto vence o medo e uma selfie pode, sim, salvar o mundo. Um sorriso pode salvar o mundo. Um bom dia pode salvar o mundo. Um gatinho fofinho pode salvar o mundo. Uma declaração de amor pode salvar o mundo. Uma série de exercícios pode salvar o mundo. Uma xícara de café, um ventilador retrô, um piso de tacos e uma samambaia, todos podem salvar o mundo, salvar o dia. Vai dar certo porque, se compartilho minha alegria, e se os outros veem minha alegria compartilhada, já deu certo. Vai dar certo porque pra sorrir basta querer. Deu certo porque numa moldura clara e simples sou aquilo que se vê.

Vai dar certo para os que estão roendo ossos e para os desempregados. Vai dar certo para os que cozinham com lenha, para os que vivem amontoados, para os cracudos do centro de São Paulo. Vai dar certo para os refugiados urbanos, para os presidiários, para os favelados. Já deu certo. Só é preciso um pouco de fé e um sorriso na cara. Para as travestis, as Mães da Maré, os Tupinambás, os quilombolas de Moju. Deu certo, acredita e vai. Afegãs e haitianos, sírios refugiados, mexicanos detidos, migrantes afogados no Mediterrâneo. Um afeto e uma selfie, pantufas e um funko, dancinhas e cactos. Deu certo. Se não deu, é porque ainda não chegou ao fim.

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.