Bemdito

Crianças que escrevem, leem, contam histórias e protestam

Celebremos nossas crianças, nossas meninas que lançam ao mundo suas histórias
POR Glória Diógenes
A ativista paquistanesa Malala Yousafzai (Foto: Southbank Centre)

Para Lucas, neto-menino que lê com o corpo todo

Havia um tempo em que a letra não aparecia por meio da escrita de um lápis. Sentei-me ao chão, tomei entre as mãos um caderno e fui traçando histórias. A borracha ao lado compunha a cena das palavras que se faziam ver e a qualquer momento poderiam sumir do papel. Evoquei a professora da escola da pequena cidade do interior sempre a reclamar de minhas letras tortas. Os cadernos de caligrafia eram preenchidos em vão. Frases subiam e desciam na cadência da narrativa. 

Os constantes recados da escola para os pais, as repreensões, a infindável repetição das palavras para que seguissem a métrica, tornavam a escrita uma mecânica enfadonha. Certo dia, durante o curso de catecismo, alguém soltou o tão proclamado ditado popular — Deus escreve certo por linhas tortas.  E o milagre se fez. Entendi. As palavras que seguiam enviesadas também eram obras de Deus, assim como a retidão das linhas. Repetia, repetia aquilo que apenas fazia sentido para mim — escrevo torto por linhas retas, como Ele.  

Logo depois, fui sendo redimida. As histórias passaram a ser lidas por outras meninas do pequeno colégio de freiras do Vale do Jaguaribe. Uma delas, sobre a carreira que levei de uma cobra coral, recebeu o comentário de outros professores. Pairava a dúvida sobre real e invenção. A narrativa acerca da galinha amiga, a Joaninha, que acabou indo para a panela da família, ganhou choros e comoções. Já nem mais se via a sinuosidade das letras e pouco importava se a fantasia aumentava as lentes do que os adultos costumavam chamar de real. As folhas do caderno multiplicavam histórias. Ouvi toda contente da professora, você é uma pequena autora de suas próprias narrativas. 

Escrever e ler são portas de um mesmo corredor. Escutava histórias percebendo que ali havia pistas para quem sabe poder driblar o ataque inesperado das cobras, a partida das Joaninhas, as almas e monstros que visitavam às noites. Bruno Bettelheim diz que o conto de fadas é terapêutico porque quem escuta, contempla, constrói suas próprias saídas para medos e conflitos internos. Os contumazes narradores eram os adultos. As crianças, atentamente, escutavam aquilo que as fábulas diziam, as saídas que ali se desenhavam.

Experimentem. Uma pesquisa rápida no Google com os termos “crianças escritoras” ou “crianças que escrevem” traz listagens de livros da literatura infantil cujos autores são “gente grande”, de técnicas de como contar histórias para crianças, ou soluções para problemas pedagógicos e “dificuldades iniciais da alfabetização”. Quase nenhum nome de criança que escreve com letra própria. 

O mundo tem sido surpreendido por meninas que falam, escrevem, defendem causas sociais e ambientais, formadoras de opinião, que ganham adesões e seguidores em diversas plataformas digitais. Em sua luta pelo meio ambiente, a sueca Greta Thunberg mobilizou mais de um milhão de pessoas a fazerem greve em prol de uma conscientização global diante das mudanças climáticas que agravam sucessivas agressões ao planeta. Antes dela, em 2012, Malala, a menina do Paquistão, aos quinze anos, foi baleada na cabeça por talibãs por se manifestar contra a proibição de estudos para mulheres em seu país. Ela se tornou a pessoa mais jovem a ganhar o Prêmio Nobel.

Recentemente, Nadeen Abed Al Latf, de apenas 10 anos, concede uma entrevista à rede de TV americana BBC News acerca do bombardeio de Israel à Gaza. Caminhando em meio a escombros de prédios destruídos, ela faz um apelo aos EUA para que parem de enviar armas para Israel. Crianças palestinas estão morrendo em Gaza. Quero deixar a minha raiva sair do meu corpo porque eles estão matando pessoas. Nós não merecemos isso, disse Nadden. Não podemos fazer nada. Estamos apenas morrendo. 

No último “Livros Abertos”, projeto que desenvolvo junto à Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece) — o lúdico, a imaginação e a fruição: fabulações da infância — conheci uma escritora de apenas nove anos, e outras foram me adicionando ao Instagram. Após o convite, recebemos a autodescrição: sou Stella Torelli, nasci no dia 12 de setembro de 2012. Sou uma criança leitora, escritora e contadora de histórias. Com 6 anos escrevi meu 1° livro que foi publicado em 13 de agosto de 2020, “A coelhinha Aninha”.

A inspiração da escrita de sua terceira publicação (na coletânea De volta à infância) surgiu, conta Stellinha, de uma tarde inspiradora na varanda do quarto dos pais. O conto Porque é tão triste soltar pipa?, fala da história de um garoto que brincava feliz com uma pipa amarela. Ele corria, ele pulava, ele sorria. Como era animado ver a pipa que subia e subia. De repente, um vento forte fez a linha enroscar na árvore e a pipa sumir no céu. O que aconteceu gente? O garoto feliz do nada ficou infeliz. Foi correndo para sua mãe e perguntou — Por que minha pipa enroscou? Como agora irei brincar e sorrir? A mãe respondeu — as pipas são assim, elas vão e vêm […] E assim foi a infância do garoto, brincando e perdendo pipas coloridas. Sabendo que elas podem partir, mas outras também irão surgir.  

A menina sul-africana Michelle Nkamankeng publica seu primeiro livro aos sete anos. Chama-se Waiting for the waves (Esperando pelas ondas). Diz que a ideia surgiu na sua primeira ida à praia. Temerosa, diante do mar, ela pergunta ao pai o que estavam fazendo parados, mirando a imensidão da água a ir e vir. A reposta do pai — estamos esperando a próxima onda — caiu como um raio de inspiração para Michelle. 

Essas crianças, não por acaso vozes femininas, mostram que o tal jogo do faz-de-conta, despertado pela literatura infantil, surge para elas como jogos-de-verdade, palavras que já não separam real e fantasia, invenção e vida. Como bem lembrou um amigo, acerca de meu último artigo escrito no Bemdito, Jacques Rancière diz que é equivocado pensar que Homero, poeta épico da Grécia antiga, representava o mundo por metáforas. Ao contrário, ele traduzia diretamente o mundo em que vivia. Tal qual as crianças escritoras. 

A raiva de Nadeen sai do corpo de palavras-que-doem e alerta sobre os riscos das armas e guerras. O tiro de Malala percorreu o mundo no brado pelos direitos à educação. Os cartazes de Greta mostram o sofrimento do planeta — nossa casa está em chamas. Michelle faz ver o movimento da vida no vai e vem das ondas. Stellinha lembra que as pipas se enroscam, partem linhas, se perdem, e outras vêm. 

Vozes-meninas escrevem entre letras tortas de suas infâncias. Sabem das guerras, das armas, das epidemias, da ameaça de extinção do planeta, do luto daquilo que vai embora, e da sabedoria de quem aguarda o fluxo e refluxo das ondas. Contam diretamente o que vivem. Inventam mundos que existem sem que se veja.  

Não seria a hora de escutar o que elas têm a dizer? Percorrer palavras povoadas por ventos, mares, ondas, emoções, indignações, coelhas, pipas, escombros, desenhos, traços à flor da pele? 

Já que a terrível natureza da escrita, como diz Flusser, nos impede de arriscar o salto para a aventura, bem melhor ir junto. No compasso da vontade de verdade, na dureza das linhas retas, o planeta não anda bem. Nós, também não. Se você conhece uma criança que escreve, coloque aqui seu nome. Fale para ela. E se tua criança se esquiva, se prende ao que precisa ser dito, solte. Deixe a pipa enroscar. Elas podem partir. E o vento escreverá outras cores.

Glória Diógenes

Antropóloga, é professora titular da pós-graduação em Sociologia da UFC e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus). É uma das fundadoras da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Arte e Intervenções Urbanas (Raiu).