Bemdito

Primaverar

Reflexões sobre resistir ao inverno da alma e chegar até a primavera
POR Carolina Mousquer Lima
Detalhe da obra "A Young Daughter of the Picts", de John White

“Por vezes viver dói, mas há sempre qualquer coisa para que viver”.
Karl Ove Knausgard, Na Primavera.

Um passeio por um jardim florido, acompanhado de um amigo poeta, só poderia resultar em um dos escritos mais belos de Freud: A Transitoriedade

O amigo falava sobre como não conseguia se alegrar com a beleza do jardim, pois um pensamento o atormentava: toda aquela beleza seria extinta com a vinda do inverno. A resposta de Freud foi que a transitoriedade, como destino de tudo que é belo, significa, ao contrário, uma valorização da experiência, a faz ainda mais preciosa. “se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não nos parecerá menos formosa por isso”. O argumento não convenceu o poeta — o que levou Freud a constatar que o amigo vivia uma espécie de revolta contra o luto. Teríamos uma capacidade de amar — chamada libido — que é investida em objetos, experiências, pessoas amadas. Quando as perdemos, levamos um tempo e temos um trabalho psíquico e tanto para conseguir voltar a gostar das coisas do mundo. 

A conversa no jardim aconteceu no verão anterior à guerra de 1914. Um ano depois, a guerra destruiu tudo que havia de belo em termos culturais: obras de arte, paisagens, acabou com a esperança de superação das diferenças que existiam entre os povos, libertou o que de pior há no ser humano. Desprovidos das coisas que amamos, diz o psicanalista, passamos a valorizar o que restou: o amor à pátria e a ternura pelos mais próximos. Diante do que estamos vivendo em 2021, me pergunto se o amor restrito à pátria e à família seria o resultado de um empobrecimento cultural, da destruição do belo.

Freud encerra com uma aposta interessante na força da experiência: “Superado o luto, perceberemos que a nossa elevada estima dos bens culturais não sofreu com a descoberta da sua precariedade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro que antes”. 

Está pesado viver em meio a tanta feiúra. Faz inverno na alma. Por isso é urgente deixar chegar a primavera. Deixar chegar dentro, afinal não basta ser primavera no jardim. É preciso primaverar. 

Foi no início da primavera que uma amiga me perguntou: posso te abraçar? Eu, ainda receosa com tamanha proximidade, disse um acanhado: sim. Deus, como eu sentia falta disso! Deixei o abraço aconchego chegar. A falta tem dessas coisas. Só sentimos o que nos falta, quando, justamente, o que nos falta se faz presente.  Primaverar é sair do deserto que é a falta de presença física e voltar a abraçar. 

Primaverar também é musicar a vida. Dançar agarradinho ao som de “you are the sunshine of my life”. Não importa com quem. Pode ser com o namorado, com as gatas, com as crias, com quem for. Desejar da vida toda sua aparente cafonice, afinal nada é mais elegante que amar.

Primaverar é ser muito rica de palavra e dar-se o luxo de jogar conversa fora com os amigos. Sentir que a vida pode ser leve, translúcida e efemêra como uma bolha de sabão. Viver todos os mínimos que explodem em máximos sorrisos.

Primaverar é refazer a beleza do mundo. É deixar a emoção das coisas belas nos tocarem. Dar para a alma o que alma gosta. Não importa se tristes ou alegres. Só importa que sejam belas. E chorar de tanta beleza. Chorar de regar a alma. Chorar, como a Gal, até refazer as nascentes que alguém secou.

Carolina Mousquer Lima

Carolina Mousquer Lima é psicanalista, especialista em Psicanálise e mestre em Psicologia Social pela UFRGS.