Bemdito

Provocações sobre mães desnaturadas, filhos “mochilinha” e Pedro Scooby

As penas da maternidade em tempo integral e a doçura de ser pai aos fins de semana
POR Paula Brandão

Leda, protagonista de A filha perdida, escrito por Elena Ferrante, que virou filme com título homônimo, chegou bagunçando certas convicções. Ouvi de várias pessoas que não tinham suportado dez minutos do filme. Mulher, mãe, esposa, a personagem tenta edificar uma carreira acadêmica e criar duas filhas pequenas sozinha – uma delas testava todos os seus limites e dava nos meus próprios nervos – enquanto seu marido viajava para trabalhar e continuava ascendendo profissionalmente. Em meio ao desespero daquele cotidiano, ela tenta fazer traduções e escrever, enquanto as filhas imiscuíam-se entre seus papéis, com suas urgências infantis. 

Para aquela mulher, despovoada de si mesma, mas atenta aos seus desejos, apareceu uma paixão, que mudou os rumos de sua vida, como um trator que passa destruindo tudo. Ela fez o que muitas já pensaram recorrentes vezes, mas nunca ousaram: jogou tudo para o alto, deixou sua casa e filhas e foi embora celebrar a mulher ainda pulsante dentro dela. Nem precisava ser um daqueles grandes amores, podia ser qualquer sentimento que a resgatasse daquele lugar enfadonho, cansativo e sem perspectivas. Que mulheres vocês conhecem que colocaram o desejo à frente da maternidade, senão as heroínas de papel? O que deixariam para trás, que é tão importante, a ponto de imobilizá-las nesse trânsito?

A resposta todas sabem de cor: além da culpa eterna, a separação aceleraria o processo de maior responsabilização de mulheres por seus filhos. Na semana passada, fiz parte de uma banca de doutorado sobre a guarda compartilhada, que apontava a disparidade entre a teoria e a prática, na divisão de responsabilidades sobre os filhos quando ocorre a separação. Dados do IBGE de 2011 revelam que 87,6% das guardas de filhos ficam com as mulheres. Tese feita com muito esmero, intitulada Vão-se os anéis, ficam os filhos, da agora doutora Laura Hêmilly, era uma provocação para enfrentar uma questão de grande relevância social: o abandono parental! 

 A autora revela que, mediante observação da Lei 13058/14, que trata da guarda compartilhada, o próprio discurso jurídico evidencia um lugar da mãe como boa, naturalmente protetora e, do pai, como um sujeito naturalmente omisso. É aquele pai que pega seus filhos com a “mochilinha” no colégio ou na portaria do prédio para passar o fim de semana com eles. Ela levantou a hipótese de que os homens vivenciariam a paternidade mais como uma obrigação do que como afeto. E eu indago: será que não cabe desnaturalizarmos também o oposto, que o lugar da mãe nem sempre é o de afeto e sensibilidade? Vocês não acham que, como mães, também fazemos certas coisas por obrigação? E que certamente o que nos move a acordar às seis da manhã para organizar a saída dos pequenos à escola é menos o afeto e mais o fato de que, se não o fizermos, ninguém mais o faz? 

Orna Donath, no livro Mães arrependidas, revelou que as mulheres têm filhos por ainda prevalecer uma certa visão de determinismo biológico, que as faz crer que seus corpos são naturalmente programados para parir e que neles há um relógio que revela ser impossível esperar mais, como parte de uma trajetória normal. Contudo, ao se depararem com o peso e as obrigações próprias da maternidade, se sentem exaustas e arrependidas. Amam seus filhos, não se trata disso, mas se pudessem voltar no tempo não seriam mães. Uma das entrevistadas diz que adora seus pequenos, mas se pudesse parava o relógio no domingo, quando o pai os trazia de volta após um final de semana, pois, de segunda a sexta, ela ficaria no seu cansativo e interminável trabalho materno e doméstico.

Para manter certa justeza com os homens, vale a pena ressaltar que, assim como não é natural que a mulher queira ter filho, tampouco é para eles a paternidade. A despeito da constatação de que lhes basta usar a camisinha se não os quer ter, muitos homens costumam dizer que não foram perguntados se desejavam ser pais. Uma vez que a gravidez ocorre fora de seus corpos, eles não podem interrompê-la. Na observação do nosso próprio cotidiano, percebemos uma certa romantização da revelação desse momento: ora se dá em forma de um presente que, ao abrir, encontra um sapatinho azul ou rosa; ou ainda em um jantar romântico quando, ao finalizar a sobremesa, encontra no fundo da tigela escrito: “você vai ser papai!” E dessa constatação, é esperada uma emoção, e que o homem tenha algum sentimento diante deste fato. 

Desnaturalizando esses papéis de paternidade e maternidade, acabo por repetir o que li um dia desses de uma feminista: numa cultura como a nossa, eu adoraria ser pai. Sim, porque é mais fácil fracassar em um determinado papel, quando já se espera isso dele. Imagina, por um átimo temporal, fracassar como mãe?

É melhor ser o Pedro Scooby – a despeito de que a Piovani vai acabar sendo sacramentada como bruxa após o BBB – e poder tirar férias da paternidade e pousar de bacana. Quando é que podemos nos desvencilhar por completo do papel de mães e relaxar sem saber dos filhos? Por que é tão insuportável para alguns assistir à Leda dizendo que passou três anos longe das suas meninas e foi maravilhoso?

Pois bem, Orna Donath diz que, independente de os filhos viverem com pais ou mães, são elas que continuam a alimentá-los simbolicamente e a cuidar deles em sua consciência. Nós assumimos um papel que é permanente e que veio sem roteiro! Mas se os ombros dos pais continuam descansados, que busquemos a equidade dessa equação: divisão entre dois adultos, sem resto ou diferença!

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).